Descartável
Mesmo com a face escondida pela máscara e óculos especiais, a voz tensa do jovem médico mostra a sua apreensão quando me diz que “precisamos sedar o senhor para melhorar sua ventilação, vamos entubar”. Ele percebe meu olhar de pânico em meio à intensa falta de ar, o que me dificulta pedir para me despedir da minha família, para, pelo menos, gravar um vídeo, pois soube que algumas pessoas fizeram isso. Ele tenta me acalmar, “vai correr tudo bem, o senhor não tem fator de risco importante, está com cinquenta e seis anos, não usa qualquer medicamento e estava trabalhando aqui conosco, até recentemente”.
Sim, há poucos dias eu estava cuidando de uma senhora que faleceu neste mesmo leito em que agora me encontro. Surgem alguns pensamentos de arrependimento por ter recusado a oportunidade de interromper meu trabalho dentro do hospital, quando a epidemia se agravou. No entanto, tive vergonha de não continuar na linha de frente por causa da longa experiência que adquiri com respiradores artificiais, especialmente para ajudar os colegas mais novos. Não imaginava que nossos equipamentos de proteção seriam tão precários diante da epidemia e, mesmo com toda minha prudência e conhecimento técnico... estou aqui. E estou apavorado.
Vídeo, não, um áudio. Não quero que as pessoas queridas fiquem assustadas com este meu estado, insisti, ofegante. Quero gravar umas palavras de despedida. O médico me conforta, “suas chances são boas de sair do coma induzido e voltar para casa dentro de umas duas semanas, fique tranquilo”. Em meio a uma crise de tosse, repito que preciso muito fazer isso e ele pede para a enfermeira buscar o celular.
Vou dizer à minha família que a amo, que lamento causar esta preocupação, mas voltarei curado para vivermos juntos tantas coisas que nos esperam. Minha primeira neta, que vai nascer em julho, depois meu neto que virá no outro dezembro, a seguir a outra neta e os outros netos, as festas de aniversário, a escolha dos presentes, os passeios no parque... quero mostrar às crianças a trilha da aventura no Parque Lagoa do Nado.
O que é isto? Max von Sidow está ao pé do meu leito, vestido como um cavaleiro medieval no filme O Sétimo Selo do Bergman! Pergunto ao médico como o deixaram entrar daquele jeito na UTI ? Está com ele o escudeiro cético, com seu olhar zombeteiro e Max von Sidow repete na língua sueca sua perplexidade por constatar que nada há depois da morte. Ele aponta para um vulto negro de cara extremamente pálida, do outro lado do corredor da UTI: nem ela, nem a morte tem respostas, não há nada, não há nenhum sentido na vida. O médico não entende o que estou falando, “o senhor deve estar delirando, pode ser a febre alta e a falta de saturação de oxigênio, por isso precisamos entubar, compreende?”.
Quero dizer à minha família que vou sair dessa, porque preciso continuar atendendo no ambulatório do hospital as centenas de famílias que dependem do nosso Centro de Referência em Neurofibromatoses. Nos próximos anos vou orientar jovens cientistas e juntos vamos fazer descobertas importantes e escrever muitos artigos e participar de congressos. Vamos ser reconhecidos internacionalmente por algumas de nossas descobertas. Vou me tornar amigo do famoso médico Vincent Riccardi, na Califórnia. Iremos a um congresso em Jackson Hole, próximo ao famoso parque Yellowstone, eu e minha filha caçula, que também é médica.
Max von Sidow parece compreender minha angústia e se aproxima do meu rosto, quando o escudeiro diz “poderíamos matar todos estes médicos e enfermeiras e tirá-lo daqui, mas ele já está perdido”. O cavaleiro medieval assente com a cabeça e oferece-me um unguento que ele traz consigo na algibeira da sua longa viagem nas Cruzadas: “tome, vai aliviar sua dor”. Olho perplexo para o médico que prepara o celular para que eu grave a mensagem. Peço a ele que tire aqueles dois intrusos daqui, por favor. Mas talvez minha voz não esteja saindo e o escudeiro se aproxima, com uma dança provocante e meio erótica, da enfermeira que traz a medicação para a minha sedação, mas ela parece não perceber.
Quero dizer à minha mulher que temos ainda viagens maravilhosas por fazer, pois iremos novamente a Paris, conheceremos Berlim, Bruges, Amsterdam e Manaus. Teremos muitas noites de amor, cada vez mais livres e cheias de prazer. Continuaremos nossas conversas inesgotáveis por inúmeras noites em torno de uma bebida na sala de jantar de nossa casa. Continuaremos nos amando para sempre.
Vou sair deste coma, porque tenho que voltar para casa para ver minhas filhas se afirmando profissionalmente, apaixonadas pelo que fazem e sendo admiradas pela sua competência, criatividade e inteligência. Vou aprender com elas muitas novas ciências, teremos insights importantes sobre o feminismo e a política, os quais mudarão nosso modo de agir no cotidiano. Lutaremos por um mundo melhor, cada uma de nós, - isso, como sempre dissemos, - cada uma de nós, à sua maneira.
Os artistas não morrem, ficam encantados! Consigo gritar de modo desafiador para o escudeiro, misturando uma adaptação de um certo pensamento de Otto Rank com o famoso discurso de Guimarães Rosa na Faculdade de Medicina. Agarro seu braço, mas ele lança-me um olhar de desdém e não responde, voltando a se interessar pelo corpo da enfermeira. Alguma coisa da minha obra há de restar, grito novamente para aquele homem de cabeça raspada e olhar cínico. O homem retira minha mão e diz: sexo é o que nos aproxima da morte, da nossa animalidade, portanto, da nossa mortalidade.
O áudio, o áudio. Quero deixar no áudio um recado para meus amigos: vou voltar desta pneumonia porque ainda tenho milhares de desenhos para criar e publicar, inventar um blog e postar muitos escritos, vou lançar livros para crianças, vou fazer cartilhas educativas, vou contribuir com minha arte para a defesa da democracia. Não, ainda não sou descartável, sou um homem na meia idade, cheio de coisas por fazer. Ainda não posso morrer!
O médico aproxima o telefone da minha boca. Max von Sidow e o escudeiro se inclinam para ouvir o que vou dizer. A enfermeira já está próxima ao tubo conectado à minha veia, por onde injetará o sedativo que me induzirá ao coma. Tenho que fazer um esforço imenso para sustar a falta de ar por instantes e dizer:
- Eu amo vocês
Um espasmo retorce minha garganta, balanço a cabeça pedindo para encerrar a gravação do áudio e a tosse retorna com tal violência que sinto o mundo escurecer, misturando em névoas o cavaleiro medieval, seu escudeiro e o médico com o celular na mão. A enfermeira está mais próxima e diz algumas palavras que não compreendo, (quer um lipstick, seria isso?) curva-se na direção do meu braço e nada mais eu sinto.
Acordo em meu quarto, é um dia de outono e estou no meu décimo sétimo dia de isolamento social por causa da pandemia de coronavírus e dos meus setenta e um anos de idade.
Para Bruno Cota, Sara Oliveira e Ricardo Menezes
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