Virtudes virtuais

Não estou reclamando. O fato de estarmos sendo digitalizados em nuvens eletrônicas não é ruim e apenas segue uma longuíssima tradição humana. O que eram os totens e tabus, senão ficções compartilhadas por todos? Já fora de moda, eles não eram menos irreais do que nossas religiões monoteistas, ou nossas culturas paleolíticas, afrodescendentes ou civilizatórias. O que pode ser mais virtual do que um império, seja ele romano, chinês ou norteamericano, apesar da concretude das espadas e ogivas nucleares que em seu nome tomamos na cabeça? Unanimidade mundial, o dinheiro, por exemplo, não passa de convenção adotada por cristãos, muçulmanos e ateus de que aquele pedaço de papel vale realmente duas cebolas e uma vida miserável. Sem falar nos cartões de crédito, um dinheiro ainda mais virtual, no qual ninguém jamais botou a mão. Fronteiras e limites definidos em armistícios assinados por gabinetes civis e militares não passam de abstrações economicamente rentáveis, que formam currais de mão de obra barata de reserva, mas nem por isso milhões de seres humanos deixam de estar dispostos a morrer para defender essa virtualidade a que chamam de meu país, minha pátria e outros nomes comuns em hinos de guerra, justificativas fúnebres e olimpíadas. Depois que inventaram as empresas formadas por pessoas jurídicas, outro acordo de cavalheiros europeus que viralizou o planeta, todas as falcatruas econômicas se tornaram fora do alcance da justiça comum e nenhum capitalista precisa se refugiar pessoalmente em ilhas onde o paraíso é fiscal. Até mesmo os nossos inalienáveis direitos humanos jamais ultrapassaram o nível de boas intenções além das portas giratórias das entidades que adotaram o acordo criado pela organização das nações unidas, aliás, três outras virtualidades: organização, nações e unidas. Mas a ciência não é ficção, dirão meus amigos, pois é tão concreta que, inclusive, se transforma em tecnologia nas lojas de 1,99! Admito que meu coração acadêmico torceria qualquer dado bruto para que assim fosse, mas faça-me entender um mínimo de física quântica, ou diga-me o que há antes do big bang ou depois dos limites do universo e deixarei imediatamente de perceber a ciência como uma crença. Se até aqui os exemplos foram insuficientes, lembro que ninguém jamais viu a eletricidade e, no entanto, aceitamos suas equações e choques como realidades materiais. Na mesma invisibilidade ocular encontram-se outras coisas absolutamente fundamentais para a nossa vida, como a ubíqua força da gravidade, seja ela newtoniana ou einsteniana, ou a amizade e, especialmente, o amor. Portanto, ser virtual é ser humano.



Comentário da Luíza no dia seguinte:

Somos virtuais?

Penso que o virtual se diferencia do real na medida em que não é atual. Atual no sentido de instantâneo, de agora, de presencial. Por mais "em tempo real" que seja, uma interação por via virtual permite um adiamento, mesmo que seja em milissegundos, da reação de um sujeito ao outro.

Permite uma lacuna. Mesmo que pequena. A chamada pode não ser atendida naquele momento, a mensagem pode não ser respondida. Em uma interação real, esta lacuna não existe. O outro está diante do sujeito e a reação é atual, instantânea, mesmo que seja uma reação de silêncio.
Já este virtual a que vc se refere, pra mim faz mais sentido chamá-lo de imaginário. Mais da ordem da fantasia, do não-real, do que do virtual como aqui o defino.

O virtual talvez tenha, por outro lado, essa característica, de uma introdução compulsória do imaginário na relação entre sujeitos. Pois é na lacuna que a fantasia é convocada. As relações reais, acredito, são mais amarradas nas dimensões simbólicas dos sujeitos e, portanto, mais sujeitas a alguma troca. Isso porque é na linguagem que nos reconhecemos e trocamos informação, é onde a subjetividade do outro é possível. Na fantasia, somente a subjetividade de quem está fantasiando está em cena. O outro não existe.

Além disso, quando a relação migra do real para o virtual-digital, além de apresentar lacunas preenchidas por fantasias, há um anteparo entre o sujeito e o outro. Um anteparo que é também um espelho, o Espelho Negro (Black Mirror) a que a série se refere. Ou seja, um reflexo que leva ao próprio sujeito, novamente.
Por isso, fiquei meio confusa, quando vc se refere, em seu texto, às nossas construções simbólicas abstratas (nossos totens e tabus, nossos símbolos e nossas inferências abstratas sobre o mundo físico), referindo-se a elas como virtuais. O virtual, pra mim, neste contexto de virtual-digital, teria essas diferenças que eu apontei. Não vejo virtual como sinônimo de abstrato, que é como eu entendi seu texto. Também não vejo virtual como sinônimo de ficção, nem ficção como sinônimo de crença... Talvez seja essa maldita sistemática linguageira da psicanálise lacaniana (bicho que me mordeu de jeito, sinto que padeço de uma febre terçã...), de que cada palavra tem em si seu próprio mundo, onde não há sinônimos, não há tradução. E talvez por isso eu esteja dando tanto valor às palavras.

Enfim, acho que, se te entendi, vc se refere, lato senso, aos aspectos abstratos (ficção, crença, fantasia, símbolos, etc) da nossa relação com o mundo. E, nesse sentido, eu concordo com você, o que nos faz humanos é justamente esta relação abstrata que temos com o mundo e uns com os outros. Somos simbólicos.

Vamos proseando.

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