Um sentimento estranho

Agravou-se nas últimas semanas. Meio desânimo, meio velhice, pensei, de início. Seria a ressaca de velhas esperanças fugidias que acabaram se transformando em tempos difíceis, arrisquei causas. Ando, como quase todos, condenado à reclusão cotidiana em celas individuais, celulares, expropriado por outros que às nossas custas faturam gigas, megas e teras desconstruindo a frágil teia de humanidades solidárias que vínhamos remendando com os nomes dos sepultados em grandes guerras mundiais. Sociologia de feicebuque, resposta pronta, mas acabada, descartei. Somente hoje percebi que a mudança está no olhar das pessoas para mim, quando cruzamos atenções nos raros instantes que precisamos levantar os olhos das telinhas. Elas olham como se eu não estivesse à sua frente ao vivo e me tratam de forma desarticulada do que sou realmente, como se lidassem com minha imagem reconstruída num fotoshopi automático e permanente, que reúne onlaine minha posição gepeéssica com todo o ambiente ao redor, o qual foi selecionado previamente pela inteligência artificial a partir dos cliques que a pessoa deu em cores, objetos, clima, insaides e autissaides, gatinhos, mensagens e viagens, formando assim suas realidades preferidas. Descubro-me inserido num ambiente defô, que o big data calculou ser o melhor para aquela pessoa naquele momento, porque assim ela se mantém num estado de consumidora eficiente e operativa: nem feliz, nem infeliz, semi-entediada e ansiosa por romper sua inércia angustiante com uma compra qualquer, num estado de síndrome de abstinência de digitar senha num cartão de crédito. Entendi que a ferramenta usada no jogo do poquémon gou permite agora que qualquer coisa seja incluída ou excluída e editada na realidade observada através da conjugação do celular, internet e inteligência eletrônica, e assim todo o mundo pode ser otimizado de acordo com as preferências uns dos outros, numa espécie de uberização da vida. Tornei-me virtual e ainda não acostumei a isso. Talvez seja a explicação para este meu sentimento de pixelização progressiva.

Comentários

  1. Esse mundo fantástico está começando a chegar e não sairá mais de nossas vidas, per fas et per nefas, queiramos ou não, está posto no horizonte para o qual caminharemos — obrigatoriamente

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