Minha mão esquerda, minha mão direita.

Antes, pareciam-me idênticas, espelhadas e parceiras em tudo que fazíamos. Um dia, pulsando a linha da pipa contra o vento a mão esquerda recebeu uma descarga de energia, como se lá do alto a pipa houvesse avistado um outro horizonte para além do que meus olhos alcançavam, e tentou arrastar-me em direção àquela distância imaginária, mas fomos contidos pela outra mão que se agarrava a mais um copo de cerveja e desequilibrava qualquer próximo passo. Desde então, as duas mãos começaram a se estranhar. A direita cismava em martelar pregos numa reforma inacabável da casa que herdei de meus pais com a clara intenção de deixá-la como herança para meus netos, enquanto a outra sonhava em construir casas coletivas compartilhando construções caribenhas de concepções cúbicas. A mão esquerda colecionava palavras recortadas de livros, poemas e canções e montava charadas e adivinhações do mundo que imaginava serem universais, enquanto a outra treinava a pontaria com um rifle que pertencera ao parente italiano morto na décima-segunda guerra mundial defendendo mussolines. Uma descobriu que havia se manchado de sangue escravo ao tocar inadvertidamente numas correntes negras num museu de senhores do engenho, enquanto a outra se lavava com álcool gel desinfetante com flagrância de camomila sempre que manuseava moedas que haviam circulado pela periferia do nosso bairro. Uma acariciava suavemente a face da amada tentando descobrir o segredo da delicadeza feminina, enquanto a outra explorava afoitamente grandes e pequenos lábios à procura do centro do prazer de homens e machos. A mão esquerda assinou cartas de amor e despedida, receitas médicas e renúncias fiscais e também a abdicação do meu poder de imperador máximo do lote quarenta de uma determinada rua num bairro de minha cidade, enquanto a outra digitou e-mails impensados, postou comentários belicosos e emitia cheques cheia de orgulho pelo saldo final, até que surgiram os cartões de crédito e ela jamais permitiu que a outra mão soubesse a senha. A mão direita usava verbos intransitivos em textos duros e cortantes como laudos científicos, mas a outra buscava tonalidades multicores para desvendar quantas folhas podem ser percebidas sob o quase mesmo tom de verde da mata atlântica em extinção. Ultimamente, as duas mãos quase não se tocavam mais: uma se armou de páginas e páginas de poemas que provam que serei mais feliz quando abrir mão da luta feroz pela minha posição individual na hierarquia da tribo, enquanto a outra manuseia pipetas e outros instrumentos de laboratório para determinar meu sangue, minha raça e meus pecados inscritos no genoma. Ontem, enquanto eu tentava acompanhar o depoimento de uma mulher se defendendo de acusações políticas num tribunal excepcional, as duas mãos começaram a disputar violentamente o controle remoto, pois uma queria ver tudo ao vivo na esperança de que a dignidade da acusada fosse preservada, mas a outra queria voltar para uma competição qualquer de culinária, de fórmula um ou de futebol, não me lembro mais, porque acreditava que a vítima havia cavado sua própria sepultura. Quando o controle se partiu, as duas mãos continuaram a lutar e dilaceraram meu peito e, desde então, estou assim, de coração aberto por causa daquela mulher bela e valente que eu não conhecia e que talvez nunca mais venha a encontrar.

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