Bastidores de um desenho: a Vila Pomar do Cafezal

Ontem publiquei a charge abaixo inspirada numa visita que fiz à Vila Pomar do Cafezal, nas encostas da Serra do Curral por trás do bairro São Lucas e do Aglomerado da Serra, quando tive o privilégio de conhecer o Maurício, um dos líderes da ocupação realizada por cerca de cem famílias, movimento este apoiado por um grupo de militantes do PSOL (partido ao qual sou filiado), entre os quais o Fernando (na foto abaixo) que foi o autor do convite para que eu ajude a criarem desenhos para melhorar a compreensão do problema vivido por cerca de 500 pessoas há vários anos.

Para poder desenhar, fui conhecer a situação com o Maurício (na foto comigo diante do memorial do Pomar). Ele me ensinou coisas muito interessantes sobre a situação geológica da Vila, numa explicação brilhante me deu durante uns 40 minutos, enquanto se utilizava de criativas imagens tridimensionais que ia fazendo nos montes de areia e brita, os quais ele misturava com cimento um pouco antes de nós chegarmos interrompendo a construção de um cômodo que servirá de bazar para a comunidade, um dos trabalhos que Maurício realiza como voluntário depois de um dia de labuta como pedreiro.

Além de conhecedor das condições geológicas do Pomar, Maurício é um artista gráfico e escultor e também pai do Lucas e do Augusto, que depois da volta da escola brincaram ao nosso redor num vento gelado de fim de tarde, enquanto seu pai entusiasmado esculpia a geografia de sua militância em benefício dos demais moradores.

Pelo que entendi, a Vila do Pomar do Cafezal vem sendo ocupada há alguns anos por famílias de trabalhadores sem teto, que vão construindo suas casas num terreno inclinado, formado na maior parte por solo original e compacto depositado ao longo de milhões de anos sobre rochas de sedimentação. Segundo Maurício, apesar da maior parte da situação do terreno ser segura para a construção de casas populares, há algumas áreas de risco formadas pelo bota fora de empresas construtoras, ou seja, entulho de construções e demolições jogado ali por centenas de caminhões durante muitos anos.

Durante a época de chuvas, a enxurrada desce violentamente pelas encostas e segue sem problemas pelas áreas de solo natural, mas provoca grandes erosões nas áreas formadas por entulhos, tornando-as inadequadas para a criação de residências nesses locais. Para isso, a comunidade decidiu criar uma escada hidráulica com a ajuda de professores da geologia, da arquitetura e da engenharia da UFMG (na foto abaixo, Fernando diante da escada hidráulica em construção pelo sistema de mutirão).

A prefeitura de Belo Horizonte vem tentando retirar todos os moradores da Vila, considerando que toda a região apresenta perigo para as moradias, mas a justiça suspendeu a remoção ao acatar a argumentação dos moradores de que há uma grande área de risco, mas as outras não o são. Entre os moradores, uma minoria aceitaria se mudar para outras habitações sugeridas pela prefeitura, mas a população restante pretende permanecer onde está, onde criou laços sociais e profissionais.

Na principal área de risco, formada pelo entulho e com grande inclinação, o movimento de resistência à remoção decidiu plantar um pomar com árvores frutíferas com a dupla finalidade de sustentar o solo pelas raízes e de ser uma construção coletiva de um espaço público a ser administrado e usufruído por toa a comunidade. No entanto, alguns moradores no entorno do futuro pomar preferem transformar o local em propriedades privadas individuais, para obterem lucros pessoais com a revenda.

O pouco que começo a entender é que há diversas questões políticas de ordem nacional num simples projeto de um Pomar: a falta de habitação para os trabalhadores, a ocupação do espaço urbano de forma predatória e guiada pelos interesses privados, a perspectiva técnica orientada pela política da prefeitura contra a perspectiva científica de professores da universidade federal, a luta entre a opção pelos espaços coletivos e públicos contra a ideologia da casa própria e da propriedade privada e a solidariedade em confronto com o individualismo e a competição.

Mas volto à charge publicada e seus desdobramentos, os quais traduzem de forma interessante as diferentes percepções que temos de um mesmo mundo.

Assim que viu a charge, Maurício comentou por mensagem: Você concebeu as casas numa situação quase vertical! Foi essa a sua leitura sobre a disposição espacial das casas? Respondi que todo cartum precisa de exagero para funcionar. Outra pessoa do movimento de resistência acrescentou: - Também reparei que o cartum fala mais da situação política do país do que da situação geológica do Pomar do Cafezal.

Maurício perguntou se seria possível ser feito outro cartum com o solo menos inclinado, prometi tentar, mas o resultado retirou justamente a duplicidade de sentidos do termo “vivendo em situação de risco”. Argumentei que quanto mais inclinado fosse o terreno, maior o risco da chegada dos tempos Temer.

Além disso, fotografei diversas construções na Zona Sul de Belo Horizonte com inclinações idênticas à da região do Pomar plenamente autorizadas pela prefeitura, com os evidentes acréscimos de caras estruturas de sustentação para as construções, certamente moradia de pessoas muito ricas no futuro. 

Afinal, o cartum permaneceu inclinado e os tempos de chuva e Temer vêm aí. A previsão meteorológica é de que projetos de Pomares coletivos vão enfrentar enxurradas de dificuldades para evitar o desabamento das precárias condições de vida dos trabalhadores.

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