Ouro em panaceia

Agora, é oficial: a mais famosa jornalista brasileira especializada em economia declarou numa rádio que “esporte é bom para tudo”. Pensei de início que ela queria dizer tudo na economia: sem dúvida, o esporte é bom para as empresas patrocinadoras, as construtoras de estádios e equipamentos esportivos, as agências de publicidade, os médicos do esporte e as academias e para os poucos atletas de elite, todos eles vivendo de forma milionária, especialmente quando sonegam impunemente o imposto de renda. Mas ela estava se referindo ao tudo mesmo, senso lato, em especial para a saúde, senso estrito. Fiquei imaginando como o esporte afetaria a saúde daquelas milhões de famílias diante da televisão para assitir os jogos olímpicos. Será que o fato das crianças estarem assitindo um jogo de voleibol, por exemplo, diminuiria o efeito maléfico do açúcar adicionado aos refrigerantes, que elas ingerem compulsivamente (especialmente durante as propagandas dos patrocinadores oficiais nos intervalos) e que são a principal causa de obesidade infantil no mundo? Será que acompanhar na telinha a emoção do final da maratona faria bem às artérias do coração paterno que trabalha sentado diante de um computador oito a dez horas por dia, 258 dias por ano, 35 anos de sua vida? Ou será que a frigidez sexual materna (decorrente da violência obstétrica em suas cesarianas) seria curada ao ver a menina da ginástica olímpica aos prantos depois de perder o ouro, apesar de já ter perdido a infância treinando dez horas por dia desde os três anos de idade? Será que o tio alcoólatra extravasaria sua agressividade masculina assistindo uma luta de boxe, evitando assim os episódios de violência doméstica em que se tornou campeão? Será que o avô ficaria aliviado de sua dor nas pernas que o atormenta enquanto continua trabalhando, porque a aposentadoria é insuficiente, ao ver o levantador de peso romper o recorde mundial e os ligamentos do joelho? Será que a avó teria mais esperança de conseguir que a justiça obrigasse o seu plano privado de saúde a pagar o tratamento para seu câncer de colo de útero diagnosticado há cinco meses, quando ela souber que cada jogador (masculino!) de futebol receberá quinhentos mil reais pela medalha de ouro? Nesta busca pelos afeitos benéficos do esporte, acabei por desconfiar que a jornalista econômica talvez se referisse a algo maior, um tudo acima de tudo, algo que nos moveria permanentemente a aceitar as regras do jogo, ao vermos na superação o espírito da vitória e a entendermos o mérito na competição como o supremo valor da vida contemporânea. É preciso estarmos mundialmente de acordo de que quem não trabalha, não come. Não merece. Aí, aceitamos trabalhar sem precisar de um guarda com chicotes a nos empurrar para o cotidiano duro da sobrevivência. Diziam antigamente que um padre fazia o mesmo trabalho que cem soldados, mas de forma mais barata e mais eficiente. Hoje, além dos padres, pastores, rabinos, xamãs e aiatolás, contamos com o mais poderoso doutrinador de todos os tempos: o atleta campeão, o medalha de ouro, especialmente aquele que saiu do mato, da casinha na roça com a mãe doente e subiu ao pódio apesar de todas as dificuldades. Quantos padres ou policiais são necessários para manter a ordem com a mesma eficiência que o exemplo de um Pelé? 

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