Posso comprar uma eleição?


Faço um esforço para compreender minha prima que se mudou para os Estados Unidos e agora defende o direito de milionários estrangeiros apoiarem Trump com o peso de suas fortunas. Argumentei com ela que eu também sou estrangeiro, apoio Kamala Harris, mas não tenho o mesmo dinheiro que Elon Musk, por exemplo. Ela não se espantou (aliás, riu de mim) com esta desigualdade de poder entre os dois lados da eleição, porque, afinal, desigualdades fazem parte do seu mundo natural.

Ainda insisti com ela se a democracia não significaria igualdade de oportunidades, inclusive de condições financeiras entre os candidatos? Ela respondeu que a democracia é apenas um método para se escolher quem vai nos governar, portanto, se há mais milionários de um lado da disputa isso não invalida a eleição, temos apenas que torcer para que o dinheiro esteja do nosso lado, como comemoraram os democratas diante do crescimento das doações para Kamala Harris nos primeiros momentos após o anúncio de sua candidatura.

Minha prima parece não estar sozinha no ambiente de desintegração de valores sociais em que vivemos, como demonstra Wendy Brown em seu livro “Nas ruínas do neoliberalismo - a ascensão da política antidemocrática no ocidente”. A professora de ciência política Wendy Brown revela de forma chocante como o neoliberalismo considera a democracia apenas um método ocasionalmente necessário para o controle da sociedade e não um objetivo ou valor em si, muito menos a maneira de se construir uma sociedade na qual a igualdade seja o princípio fundamental.

Aliás, é exatamente a ideia de igualdade entre as pessoas a grande vilã para o pensamento dominante que a elite dissemina com todos os recursos disponíveis tentando negar que os seres humanos tenham os mesmos direitos políticos e, principalmente, econômicos. 

Por isso, a burguesia precisa insistir na existência de “diferenças naturais” de sexo, de raça, de culturas, de nacionalidades, de sangue azul, enfim, que explicam as fortunas, justificam o patriarcado, a propriedade privada e as heranças. Para o 1% mais rico, qualquer proposta de redução das desigualdades sociais é considerada “comunismo”.

Para nos convencer da naturalidade do seu mundo terrivelmente desigual, a burguesia criou a mais profunda convicção na meritocracia – desde o filho do empresário católico aos moradores das periferias evangélicas, - do bolsonarista na frente do quartel ao esquerdista no suposto comando do governo – todos pensam que as pessoas merecem o que elas têm.  

Curiosamente, foi justamente este caminho, o da meritocracia, que a classe dominante não percorreu para estabelecer seus poderes, a não ser que possamos chamar os canhões, a escravidão, a herança da aristocracia, as colônias, e os bloqueios econômicos de “mérito”.

Nesse ambiente, naturalmente, um milionário que “merece” sua fortuna, segundo minha prima, tem todo o direito de comprar qualquer eleição a favor do seu candidato. O resto é comunismo.

 


 

Comentários

Mais visitadas

PJ, o duro

Este livro é uma ousadia

A história em quadrinhos sobre a Amazônia