2023, o ano das pitangas


Na infância, eu queria ser filósofo porque meu pai se referia a eles com o maior respeito. Não sabia o que significava ser filósofo, mas desconfiava que teria que aprender latim ou alemão e estar morto para ser um deles. Isso me assustou bastante e decidi viver um pouco mais. Depois de adulto, cheguei a cogitar estudar filosofia, mas já havia me tornado médico e cartunista e por isso as pessoas esperam de mim um diagnóstico ou uma piada, jamais um pensamento profundo.

Mas volta e meia, ao tentar esclarecer algumas dúvidas cotidianas, pergunto-me se não estou filosofando, como agora diante das pitangas que estão frutificando no meu jardim. Depois de vários anos de esterilidade, pela primeira vez surgiram dezenas de pitangas que se vão se desenvolvendo lindas e suculentas, mas ao atingirem aquele tom amarelo avermelhado brilhante, elas atrofiam de um dos lados, depois apodrecem parcialmente e caem ao solo.

Meu compadre Leonardo Diniz, consultado, diagnosticou literalmente na mosca: minúsculos insetos parecidos com abelhinhas depositam seus ovos nas frutinhas recém eclodidas, que se transformam em pequenas larvas brancas, muito ativas, que devoram as pitangas por dentro. Na indisposição para usarmos inseticidas, o tratamento seria montar armadilhas com pequenas garrafas, para que as mosquinhas fossem capturadas e morressem afogadas no líquido açucarado que desviara sua atenção das frutas.

Imaginei as bichinhas moribundas se debatendo com as asas agarradas ao melado e arrependidas, sentindo-se idiotas por terem caído naquele truque, e estremeci em dúvidas.

Então eu iria ser mais um a contribuir para o grave extermínio dos insetos polinizantes, que vem ocorrendo nas últimas décadas, por causa dos agrotóxicos, especialmente no Brasil, onde o governo bolsonarista aumentou seu uso de forma escandalosa? Não me senti confortável ao lado de Ricardo Salles, um dos responsáveis pela devastação criminosa do ambiente.

E, pensando bem, eu precisava comer aquelas pitangas? Há inúmeros pés dessa deliciosa fruta nas ruas de meu bairro, dos quais sempre colho e saboreio algumas frutas maduras durante as caminhadas que faço para conter meu envelhecimento. Portanto, as pitangas do meu jardim não fariam falta na minha dieta, ou seja, não se trata de uma questão de "eu ou elas", ou de "nós, humanos, contra eles, os insetos". Não quero esse tipo de polarização crescendo no jardim.

Além disso, percebi que minha permissão implícita para matar as abelhinhas seria o fato delas estarem dentro dos limites da minha casa, ou seja, eu estaria exercendo o direito de propriedade. O mesmo direito de propriedade enunciado pelo vizinho do lado, dias atrás, ao me alertar para não me assustar com eventuais disparos de arma de fogo em sua casa, pois havia comprado uma pistola automática, com sua licença de caçador e colecionador, para matar o ladrão que levara uma de suas bicicletas, caso ele voltasse para roubar a outra.

É também o direito de propriedade que venho assumindo como legal e legítimo, desde que comprei minha casa das mãos de grileiros e seus herdeiros. Sim, me refiro àqueles invasores de terras que ocuparam este território onde viviam os Aimorés, os quais foram exterminados junto com a Mata Atlântica que os alimentava. Ocupo, hoje, envergonhado, um lote de trezentos e sessenta metros quadrados deste genocídio.

Diante do pé de pitanga, outras dúvidas continuaram a emergir, como até que ponto a minha vida se distingue da vida daquelas pequenas larvas no contexto dos quatorze bilhões de anos de existência do Universo? Elas sentiriam dor ao serem esmagadas? Teriam elas o mesmo sentimento de propriedade particular ao eclodir no interior suculento da fruta, dizendo - esta pitanga me pertence?

Compreendi afinal a admiração de meu pai pelos filósofos, pois filosofar aumenta e complica a angústia de viver, e exige uma coragem tremenda para agirmos de acordo com as conclusões às quais chegamos, além de ter que aprender latim (ou alemão) e depois morrer, como todo ser vivo, incluindo a pitangueira e suas hospedeiras.

Decidi deixar as abelhinhas em paz.

A mesma paz que espero encontrar neste ano que vai começar, com menos agrotóxicos, menos armas e menos propriedade privada.

E mais pitangas nas ruas.

Lor
 



 


Comentários

  1. Sempre muito cirúrgico meu amigo Lor, de fato, qual a nossa diferença em comparação ao universo, se somos do tamanho de larvinhas. Seria mais cômodo continuar usando agrotóxicos e devastando a natureza, mas por que não utilizar outros meios? E se realmente não vamos nos alimentar, por que desequilibrar o equilíbrio perfeito? Novamente digo, texto muito cirúrgico meu amigo Lor!

    ResponderExcluir
  2. Genial seu texto oh prezado LOR.!
    Parabéns e gratíssimo.

    ResponderExcluir
  3. Grande Lor, não escolhemos ser filósofos. Simplesmente o fato de pensar ser-no-mundo, o que é o universo, a "ética" das abelhas, a compaixão com os pequeninos seres vivos e tantas outras nos faz pensadores. Se preferir, matutadores ou filósofos. E, sim, é uma postura por vezes chata e perigosa. Mas como dizia outro matuto pensador, viver ( e matutar) é muito perigoso.
    Mas por vezes saboroso.
    Chico Marinho

    ResponderExcluir
  4. O de sempre que não consegue fugir de nós e do qual não conseguimos fugir. Muito bom. Tudo contraditório dentro da complexidade. No entanto há que navegar. Bom ano novo esperançoso. Abraços

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário que será enviado para o LOR.

Mais visitadas

A última aula do Professor Enio

Último post

Comemorando meus 50 anos como cartunista!