Serenidade revolucionária

 


Terminei de ler “Mulheres, raça e classe” da Angela Davis, a mundialmente conhecida intelectual feminista e comunista que escreve como fala: com serenidade revolucionária. 

Angela recupera a história do racismo e das mulheres negras para demonstrar que estas condições fazem parte das engrenagens da formação da estrutura de classes na sociedade capitalista. Sua clareza e extensa documentação fazem-me sonhar com este livro ilustrado para jovens, para que mais pessoas pudessem compreender desde cedo a estrutura social desigual na qual vivemos.

Entendemos melhor o mundo com o recurso das metáforas e das imagens, como chamou atenção Mary Hesse, e meus pensamentos surgem por meio de formas e desenhos. Então não resisti e comecei a fazer um esboço do que aprendi neste livro da Angela Davis.

Ao ver a luta das mulheres, em especial das negras (e mais ainda das escravizadas), para manter a própria vida e gerar novas pessoas, tenho a forte percepção (quase tautológica, admito) de que o sentido da vida é essencialmente a reprodução da vida: gerar novas pessoas e recompor as energias gastas no cotidiano. Sabemos que o papel da mulher nessa reprodução da vida tem sido desprezado, desde a sua importância biológica óbvia na gestação e criação das crianças, passando pela renovação cotidiana da força de trabalho da família, até a participação na produção formal da riqueza humana por meio do trabalho assalariado.

A desvalorização do papel das mulheres existe e subsiste porque tem uma finalidade lucrativa, ou seja, permite maior apropriação da riqueza por parte dos patrões. Sabemos disso, mas fiquei me perguntando se eu conseguiria representar graficamente essa participação das mulheres, especialmente as mulheres não brancas, na produção da riqueza.

Comecei reunindo numa mesma imagem as engrenagens da reprodução da vida no sistema capitalista. A força de trabalho humana é utilizada sobre a matéria prima fornecida pelos donos do capital, gerando um produto que possui um valor de troca correspondente à soma da força humana e da matéria prima. Ao comercializar o produto, o capitalista paga um valor menor pela força de trabalho humana, retendo a parte que Marx chamou de mais-valia, ou seja, o lucro. Imaginei a primeira figura.



O salário geralmente corresponde ao valor médio suficiente para recompor a força de trabalho e permite o consumo de bens e alimentos pelos trabalhadores, assim como o lucro permite o consumo (noutros patamares) pelos patrões ou o aumento do seu capital.

Uma parte da reposição da força de trabalho é alcançada com o trabalho doméstico, que geralmente é realizado pelas mulheres. As mulheres e os desempregados, especialmente as pessoas não-brancas e estrangeiras, constituem o chamado exército de mão de obra de reserva, um contingente de pessoas que aceitam qualquer salário para sobreviverem. Por isso, quanto mais desempregados, menores os salários pagos aos trabalhadores.

Quanto menor o salário, maior o lucro dos donos do capital e a existência de países periféricos ou colônias com menos oferta de emprego, funciona como um exército global de mão de obra de reserva.


Nessa estrutura global, o racismo e o sexismo desempenham um papel adicional de aumento da mais-valia, ou seja, do lucro dos patrões, porque desvalorizam o trabalho das mulheres e dos não-brancos. Assim, os donos do capital pagam salários menores para uma mulher ou uma pessoa não-branca, ainda que ela realize o mesmo trabalho que um homem branco.

Uma grande parte do lucro extraído dos salários menores e do trabalho doméstico não remunerado é produzido pelas mulheres negras, que estão na camada mais explorada da população. 

Por isso os donos do capital precisam manter as mulheres e os não-brancos desvalorizados. Para isso, precisam negar a existência do racismo e do machismo estruturais, para acumularem sua riqueza infinitamente.

Agora, posso dar a forma final ao desenho de abertura deste texto.

Obrigado, Angela Davis.




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