O mito da beleza
(ou como envelhecer sem rusgas)
Terminei de ler, com 30 anos de atraso, o incrível livro de Naomi Wolf [1] sobre como a busca por um corpo ideal se tornou uma forma de redução da autoestima feminina, o que permite a sua aceitação das desigualdades de gênero: O Mito da Beleza.
Aprendi muito com Naomi sobre como a sociedade moderna vem criando um opressivo senso comum em torno de um padrão de beleza universal, que ela chama de a Donzela de Ferro (um instrumento de tortura da Inquisição Católica - ilustrada acima - sobre o qual existem algumas dúvidas [3]).
Este mito da beleza natural e universal, corresponderia à mulher branca, jovem, loura, de olhos claros, magra, hiper sexualizada [2], maquiada e vestida de determinada maneira. Este modelo de beleza inalcançável seria imposto desde a infância a todas as crianças do mundo, apesar da maravilhosa diversidade de tipos humanos espalhados pelo planeta.
Uma vez que a maioria das pessoas não se encaixa no padrão de beleza adotado pela indústria de cosméticos, das roupas, das cirurgias plásticas, do ambiente de trabalho e da cultura em geral, o sentimento de baixa autoestima é profundamente inculcado nas mulheres, o que permitiria sua conformidade com as condições de inferioridade e submissão necessárias para sua exploração social e econômica.
Além disso, o mito da beleza, segundo Naomi, contém em si a bomba relógio do envelhecimento, que atinge a todos os gêneros. Preservar a beleza da juventude a qualquer preço se tornaria, então, o verdadeiro mito que alimenta as indústrias dos cosméticos, das dietas, as academias, as cirurgias plásticas, os tratamentos alternativos, a moda e a pornografia.
Um efeito particularmente cruel do mito da beleza é o aumento incessante, disseminado e muitas vezes letal das cirurgias plásticas, como relata a médica Luíza de Oliveira Rodrigues, minha filha, em seu texto no jornal O Tempo.
Há um trecho belíssimo em O Mito da Beleza, quase um poema, que transcrevo ao final [3], que fala de um rosto feminino envelhecendo sem o mito da beleza e sem a luta cruel contra as rugas.
O livro trata principalmente das mulheres, mas sabemos que todas as pessoas estão envolvidas neste mito da beleza. Nós, homens, somos a parte beneficiada nesta mecânica de exploração feminina, pois a sociedade convence as mulheres a violentarem o seu corpo (cirurgias, dietas, moda, comportamentos sexuais) para o suposto prazer dos homens. No entanto, mesmo sendo beneficiários do sacrifício das mulheres, quando nós também embarcamos no mito da beleza, e desvalorizamos a mulher aos pedaços, penso que destruímos parte de nossa humanidade, nos tornamos mais violentos e perdemos a oportunidade de afetos e prazeres que poderíamos vivenciar junto às mulheres como elas e nós somos na realidade.
É preciso ler o livro O Mito da Beleza para compreendermos a importância e a profundidade das denúncias que nos apresenta Naomi Wolf, mas, como todo bom livro, ele desperta novas dúvidas.
Quando e onde o mito da beleza surgiu? Naomi situa suas origens nas décadas de setenta e oitenta do Século 20, como “uma reação dos homens contra segunda onda feminista”. No entanto, a busca pela eterna beleza da juventude não seria mais antiga? O mito da beleza não existiria há mais tempo e não estaria presente em outras culturas e civilizações?
Além disso, quais as relações do mito da beleza com o modo de produção capitalista? Naomi dedica poucos parágrafos aos aspectos econômicos do mito e relaciona a baixa autoestima como uma necessidade dos sistemas escravagistas para a exploração humana, mas acaba por associar o mito da beleza com a expansão recente do consumo de bens e serviço. Podemos concluir que reduzir a autoestima feminina ajudaria o capitalismo a manter os salários das mulheres inferiores aos dos homens, aumentando assim o lucro do sistema como um todo?
Finalmente, quais as relações entre o mito da beleza e o racismo? Apesar de identificar o padrão branco ocidental como o modelo de beleza idealizado, Naomi não aprofunda o racismo existente por trás do mito.
Com estas dúvidas em mente, estou lendo o Mulheres, raça e classe da Angela Davis. Os primeiros capítulos prometem boas respostas a estas questões.
Lor
Primeiro de abril (eita!)
[1] Naomi Wolf https://en.wikipedia.org/wiki/Naomi_Wolf
[2] Ver excelente vídeo recente sobre hiper sexualização das pop stars https://www.youtube.com/watch?v=6n8lmc-zYaA
[3] Trecho transcrito (e adaptado quanto ao número de parágrafos e algumas palavras em itálico para contextualizar com o conteúdo anterior), extraído da página 334 da edição brasileira da Editora Boitempo:
“Seria possível ver os sinais do envelhecimento feminino como doentios, especialmente quando se tem interesse em fazer com que as mulheres considerem estes sinais da mesma forma.
Ou seria possível ver que, se uma mulher é saudável, ela chega a viver até envelhecer.
À medida que vai vivendo ela reage, fala, revela emoções e vai criando o próprio rosto.
As rugas mapeiam seu pensamento e se irradiam dos cantos de seus olhos após décadas de riso, reunindo-se como um leque que se fecha quando ela sorri.
Essas rugas poderia ser chamadas de uma rede de “graves lesões” por cirurgiões plásticos, ou seria possível perceber que, numa caligrafia precisa, o pensamento gravou marcas de concentração entre suas sobrancelhas e riscou de um lado a outro da testa os vincos horizontais da surpresa, da alegria, da compaixão e da boa conversa.
Uma vida inteira de beijos, palavras e lágrimas aparece expressiva em volta de uma boca raiada como uma folha em movimento.
A pele se solta no rosto e no pescoço, dando a suas feições uma moldura de dignidade sensual.
Suas feições ficam mais fortes à medida que ela fica mais forte.
Ela olhou à sua volta a vida inteira e isso é evidente.
Quando o cinza e o branco aparecem em seu cabelo, isso poderia ser chamado de um segredo indesejável, ou poderia ser chamado de prata ou luar.
Seu corpo se enche, ganhando gravidade como um banhista que enfrentou a água, tornando-se mais generoso como o restante dela.
O escurecimento das olheiras, o peso das pálpebras, as hachuras que as sombreiam, revelam que tudo de que participou deixou nela sua complexidade e riqueza.
Ela é mais escura, mais forte, mais solta, mais firme, mais sexy.
A maturação de uma mulher que não parou de crescer é algo bonito de se ver.”
O livro trata principalmente das mulheres, mas sabemos que todas as pessoas estão envolvidas neste mito da beleza. Nós, homens, somos a parte beneficiada nesta mecânica de exploração feminina, pois a sociedade convence as mulheres a violentarem o seu corpo (cirurgias, dietas, moda, comportamentos sexuais) para o suposto prazer dos homens. No entanto, mesmo sendo beneficiários do sacrifício das mulheres, quando nós também embarcamos no mito da beleza, e desvalorizamos a mulher aos pedaços, penso que destruímos parte de nossa humanidade, nos tornamos mais violentos e perdemos a oportunidade de afetos e prazeres que poderíamos vivenciar junto às mulheres como elas e nós somos na realidade.
É preciso ler o livro O Mito da Beleza para compreendermos a importância e a profundidade das denúncias que nos apresenta Naomi Wolf, mas, como todo bom livro, ele desperta novas dúvidas.
Quando e onde o mito da beleza surgiu? Naomi situa suas origens nas décadas de setenta e oitenta do Século 20, como “uma reação dos homens contra segunda onda feminista”. No entanto, a busca pela eterna beleza da juventude não seria mais antiga? O mito da beleza não existiria há mais tempo e não estaria presente em outras culturas e civilizações?
Além disso, quais as relações do mito da beleza com o modo de produção capitalista? Naomi dedica poucos parágrafos aos aspectos econômicos do mito e relaciona a baixa autoestima como uma necessidade dos sistemas escravagistas para a exploração humana, mas acaba por associar o mito da beleza com a expansão recente do consumo de bens e serviço. Podemos concluir que reduzir a autoestima feminina ajudaria o capitalismo a manter os salários das mulheres inferiores aos dos homens, aumentando assim o lucro do sistema como um todo?
Finalmente, quais as relações entre o mito da beleza e o racismo? Apesar de identificar o padrão branco ocidental como o modelo de beleza idealizado, Naomi não aprofunda o racismo existente por trás do mito.
Com estas dúvidas em mente, estou lendo o Mulheres, raça e classe da Angela Davis. Os primeiros capítulos prometem boas respostas a estas questões.
Lor
Primeiro de abril (eita!)
[1] Naomi Wolf https://en.wikipedia.org/wiki/Naomi_Wolf
[2] Ver excelente vídeo recente sobre hiper sexualização das pop stars https://www.youtube.com/watch?v=6n8lmc-zYaA
[3] Trecho transcrito (e adaptado quanto ao número de parágrafos e algumas palavras em itálico para contextualizar com o conteúdo anterior), extraído da página 334 da edição brasileira da Editora Boitempo:
“Seria possível ver os sinais do envelhecimento feminino como doentios, especialmente quando se tem interesse em fazer com que as mulheres considerem estes sinais da mesma forma.
Ou seria possível ver que, se uma mulher é saudável, ela chega a viver até envelhecer.
À medida que vai vivendo ela reage, fala, revela emoções e vai criando o próprio rosto.
As rugas mapeiam seu pensamento e se irradiam dos cantos de seus olhos após décadas de riso, reunindo-se como um leque que se fecha quando ela sorri.
Essas rugas poderia ser chamadas de uma rede de “graves lesões” por cirurgiões plásticos, ou seria possível perceber que, numa caligrafia precisa, o pensamento gravou marcas de concentração entre suas sobrancelhas e riscou de um lado a outro da testa os vincos horizontais da surpresa, da alegria, da compaixão e da boa conversa.
Uma vida inteira de beijos, palavras e lágrimas aparece expressiva em volta de uma boca raiada como uma folha em movimento.
A pele se solta no rosto e no pescoço, dando a suas feições uma moldura de dignidade sensual.
Suas feições ficam mais fortes à medida que ela fica mais forte.
Ela olhou à sua volta a vida inteira e isso é evidente.
Quando o cinza e o branco aparecem em seu cabelo, isso poderia ser chamado de um segredo indesejável, ou poderia ser chamado de prata ou luar.
Seu corpo se enche, ganhando gravidade como um banhista que enfrentou a água, tornando-se mais generoso como o restante dela.
O escurecimento das olheiras, o peso das pálpebras, as hachuras que as sombreiam, revelam que tudo de que participou deixou nela sua complexidade e riqueza.
Ela é mais escura, mais forte, mais solta, mais firme, mais sexy.
A maturação de uma mulher que não parou de crescer é algo bonito de se ver.”
[3] Ver aqui as dúvidas sobre a existência e uso do instrumento de tortura denominado Donzela de Bronze
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