Duas histórias brasileiras



Quebrei minha promessa de ler somente livros escritos por mulheres para conhecer dois autores novos em “O avesso da pele” e “Prisão domiciliar, sem tornozeleira”.

Jefferson Tenório é escritor carioca experiente, agora premiado com o Jabuti de 2021, e Corélio M.S. é engenheiro de Minas Gerais, e está publicando pela primeira vez. Ambos estão na casa dos quarenta e na umbanda. Mas o que realmente os une é o resgate da memória de seus pais e a capacidade de tocarem em suas feridas mais dolorosas: o racismo e o autismo.

No “O avesso da pele” de Jefferson Tenório somos levados a re-conhecer as ruas de Porto Alegre, desta vez andando do outro lado da calçada, aquela reservada aos que não possuem os privilégios da pele herdada dos europeus. Com ele aprendemos a ser constantemente parados, revistados e eventualmente mortos pelos policiais militares, porque nossa pele escura nos transforma automaticamente em criminosos em potencial. Com seu pai, professor, entramos esperançosos nas salas de aula de escolas públicas e voltamos para casa com o cansaço pesado da realidade dos jovens da periferia num Brasil desesperançado. Neste livro, os pretos, pardos e brancos estão aprisionados na tragédia do racismo, mas o olhar amplo de Jefferson convida a todos para se libertarem do sistema social e econômico que gera esta opressão coletiva, pois nada temos a perder, a não ser as correntes odiosas da escravidão.

Na “Prisão domiciliar” do Corélio, somos informados na primeira página que os afetos podem ser profundamente alterados pelas sequelas de um tiro na cabeça, o que poderia ser uma metáfora contundente para o autismo, se o ferimento não tivesse acontecido de fato com seu pai no exercício de sua função militar. Escrito com a agilidade e a rapidez de quem tem muita coisa a dizer e sente que lhe falta tempo de vida para isso, incluindo a experiência de contrair a COVID, apesar do isolamento social, o livro do Corélio forma um mosaico de situações vividas por uma pessoa que desconhecia o próprio autismo e tentava superá-lo, às cegas, num esforço tremendo para ser "neurotípico". Este primeiro livro talvez seja o salvo conduto que ele conquistou para seguir adiante com esta forma de libertação recém descoberta, a literatura.

Mas o “Prisão domiciliar” tem mais uma coisa que me toca: foi escrito por um amigo. Apesar da nossa diferença de idade, Corélio se diz em sintonia comigo (não sei se porque ele se sente mais velho do que é ou me vê mais novo do que sou), e temos compartilhado nossa tristeza e indignação contra o bolsonarismo (esta síntese fascista brasileira de machismo, racismo, autoritarismo, violência e retrocesso humanitário em todos os sentidos). Talvez a estupidez bolsonarista produza uma dor ainda mais contundente no cérebro hiper racional do Corélio. Felizmente, agora ele tem na literatura também uma válvula de escape para aguentar um pouco mais, até que possamos recuperar o caminho da democracia.

Então, poderemos nos livrar da prisão domiciliar e das tornozeleiras ideológicas e visitar Porto Alegre. Quem sabe encontraremos por lá o Jefferson Tenório, pessoalmente?




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