Olhe novamente para cima


Na semana que passou, em meio às comemorações natalinas frustradas pela pandemia, dois acontecimentos demonstraram de formas diferentes o papel da ciência em nossas vidas: os lançamentos do fantástico telescópio espacial James Webb e do filme “Não olhe para cima“.

O primeiro acontecimento, o telescópio, cujo nome homenageia um dos principais idealizadores dos projetos da NASA, foi o resultado de um impressionante trabalho científico e tecnológico que durou décadas, o qual só se tornou possível pela cooperação internacional entre cientistas europeus, canadenses e norte-americanos e custou cerca de 10 bilhões de dólares. O novo telescópio, mais sofisticado, preciso e potente do que o já incrível Hubble, ainda está a caminho de sua posição estacionária no espaço, e já consumiu cerca de 40 milhões de homens-hora de trabalho, entre elas as horas de trabalho do amigo Ivo Busko, um astrofísico brasileiro que trabalha no projeto há doze anos. Este esforço internacional científico mostra a ciência real em curso: visão política de futuro, investimento de recursos públicos, trabalho racional, democrático e cooperativo.

Se as etapas finais nas próximas semanas correrem bem, o novo telescópio vai começar a responder às perguntas de milhares de cientistas sobre o Universo, os planetas, a origem da vida e muitas outras perguntas que serão formuladas a partir das primeiras respostas obtidas. Até mesmo responder à questão levantada pelo filme “Não olhe para cima”, se algum cometa ou asteroide poderia se aproximar perigosamente da Terra e extinguir a espécie humana.

No filme “Não olhe para cima”, (prometo não dar spoiler) ao contrário do quase anonimato dos trabalhadores envolvidos no projeto do novo telescópio, os cientistas são representados por estrelas que formam uma excelente constelação hollywoodiana, a qual garante a atração gravitacional de públicos de diversas origens e já se tornou um dos assuntos mais comentados em poucos dias, segundo o The Guardian de 28/12/21. Nos primeiros minutos do filme, tomamos conhecimento da descoberta realizada por uma cientista, uma estudante de pós graduação, de que um meteoro imenso está vindo em nossa direção e deverá colidir com a Terra em seis meses, causando a destruição da humanidade.

A partir desta descoberta, o filme nos apresenta as múltiplas reações humanas à tragédia anunciada, desde a crise de pânico do orientador da jovem cientista às manobras políticas da presidenta dos Estados Unidos em campanha para sua reeleição. De permeio, as redes sociais, imprensa, empresários, show business e forças armadas se envolvem numa disputa de narrativas sobre a vinda do meteoro, com destaque para um capitalista, uma caricatura do Steve Bezos Musk, que quer explorar os recursos minerais do asteroide por meio de sua empresa de alta tecnologia digital.

No filme, a cientista e seu orientador tentam alertar a sociedade para o risco iminente, mas se comportam de forma voluntarista, heroica, individualista e desesperada, o que os torna presas fáceis das redes digitais e da mídia de entretenimento. Aos poucos, o assunto vira uma disputa polarizada politicamente, uma guerra de opinião que ignora os fatos, numa sátira ao que vem acontecendo com o aquecimento global, a crise climática e o controle da pandemia (incluindo, por exemplo, neste momento, a recusa da vacinação de crianças pelo governo genocida de Bolsonaro).

Em contraste com a ciência em curso no projeto do telescópio James Webb (visão política de futuro, investimento de recursos públicos, trabalho racional, democrático e cooperativo) a narrativa do filme pretende que a “verdade científica” deveria ser apolítica e suficiente para convencer as pessoas do caminho certo. No entanto, as pessoas continuariam ignorantes porque os cientistas (isolados, solitários e quixotescos) não conseguem traduzir suas ideias para o grande público. E os grandes interesses capitalistas, mediados pelos políticos eleitos por pessoas incapazes de entender a ciência, prevalecem sobre a tal verdade científica. O filme faz um retrato tão realista da ciência quanto o lançamento do James Webb.

Então, esses dois acontecimentos nos ensinam que somos capazes de construir telescópios científicos que nos revelam a origem da vida, mas também podemos eleger representantes do capitalismo que não se importam com isso e nem com o fim da humanidade.

Por isso, em 2022, olhe novamente para cima, pois há mais um ponto luminoso entre o céu e a terra. Pode ser um telescópio, um meteoro ou uma estrela com a nossa esperança.

Lor

Comentários

  1. Síntese perfeita de um momento da história humana que beira ao surrealismo.

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  2. Excelente, Lor! As associações entre o filme e a realidade estão apontadas em agudo. Você comunica muito bem um sentido para as coisas.

    Penso também o filme como uma brecha tão "da hora"… da vida e arte se encontrando no ponto insuportável para comunicar algo a, indignar-se a tempo de, pois tudo é urgente para...

    Não concordo quando você diz que não estragará surpresas, vulgo spoiler, pois tá (quase) tudo aí. Deixe um alerta.

    Um salve e um abraço pelo texto e imagem.

    André Leão

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  3. Um ano novo melhor que este pra você e sua família, Lor. E obrigada por nos ajudar, com a sua lucidez, a atravessar essa tormenta. Grande abraço. Ana

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  4. A tradução do olhar para cima de cada um tem potencial infinito de disparidades, mas o olhar solidário para dentro de nós mesmos nos torna uma orquestra sensacional comanda pelo nosso Maestro Mor que tanto nos ama.

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  5. Parabéns Lor!!!! Com muita lucidez e brilhantismo vc nos chama a atenção para aspectos positivos e negativos da nossa sociedade.

    Abs.,

    João.

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