Cinquenta tons de ditadura (REVISADO EM 3/5/2022)

 



Meu amigo pergunta por que considerei a China uma ditadura, no texto sobre o grande naturalista Alexander von Humboldt, recentemente publicado na Revista Ecológico (ver aqui http://revistaecologico.com.br/revista/ e anteriormente neste blog https://lorcartunista.blogspot.com/2017/04/minha-ignorancia-cultivada.html ).

Minha primeira resposta seria: a ausência de liberdade e democracia, num regime controlado pela força.

Mas, de quais liberdades estamos falando?

Posso não ter o direito de sair de um país porque as autoridades cancelaram meu passaporte ou, noutro, foi o meu cartão de crédito. Posso ser proibido de expressar minha opinião porque há censura no jornal ou porque não tenho dinheiro suficiente para fazer um jornal ou posso ser processado por um escritório de advocacia que custa a fortuna que eu jamais juntaria em muitas vidas. Posso não ter direito a um julgamento justo porque não há garantias constitucionais ou porque sou negro e moro na periferia. Posso votar, mas não tenho liberdade de decidir sobre o meu corpo como mulher. Portanto, é preciso contextualizar a liberdade sobre a qual falaremos.

De quais democracias estamos falando?

Pode não haver eleições para o governo ou pode haver eleições apenas entre homens brancos e donos de escravos. Pode haver eleições, mas elas não afetam a distribuição da riqueza, ou pode não haver eleições, mas as necessidades básicas da população são atendidas. Pode haver eleições, mas uma rainha mantém a simbologia do direito divino e hereditário assim como as bases para o racismo. Pode não haver eleições, mas o chefe da aldeia respeita seus habitantes. Portanto, também é preciso contextualizar a democracia sobre a qual falaremos.

Mais uma vez, de quais forças estamos falando?

Pode não haver tanques nas ruas, mas polícias militares mantendo o genocídio de jovens pretos nas favelas. Pode não haver polícia secreta espionando os cidadãos, mas pode haver vigilância eletrônica com milhões de câmeras bisbilhotando a vida de cada um em nome de sua segurança. Pode não haver tortura de presos políticos nos interrogatórios, mas todos os pobres são mantidos calados e obedientes pelo terror de uma passagem por uma delegacia por um furto de um pão ou uma bagana de maconha.

Poderíamos criar um índice, à semelhança do PIB ou do GINI, para classificarmos os diferentes tons de ditadura? Ou seu inverso, os diferentes tons de democracia?

Então, proponho o indicador denominado IDEAL: Índice de Democracia E Ampla Liberdade, que seria a soma destes critérios: liberdade, igualdade econômica e ausência de instrumentos de força para o controle social.

No fundo do poço, teríamos uma ditadura completa, uma sociedade sem liberdade, sem igualdade econômica e controlada pelo terror militar. A pontuação seria, numa escala de 0 a 100, o zero absoluto. Exemplos? Podemos nos lembrar das colônias europeias na África, nas Américas e no Oriente, os regimes feudais, os impérios da antiguidade.

Na outra ponta, a nota 99, a utopia para sempre a ser perseguida, toda a humanidade vivendo em liberdade de ideias e costumes, sem desigualdade econômica suficiente para causar qualquer tipo de opressão, sem forças militares no controle social para a manutenção da ordem. Exemplo? Não temos ainda, mas podemos dar um passo por dia nessa direção.

Disse toda a humanidade? Disse-o bem, pois não é possível uma democracia plena num país isolado, pois as ditaduras ao redor farão de tudo para a destruir, pela natureza intrínseca dos regimes ditatoriais: ampliar poder atavicamente.

Como exercício para utilização da escala IDEAL, vamos ver alguns países? Comecemos pelo Brasil, que conhecemos melhor. Uns 20 pontos para liberdade de expressão, 5 pontos para igualdade econômica e 10 pontos para desmilitarização: total 35 pontos.

A tabela abaixo reúne minha impressão (altamente subjetiva, é claro) sobre alguns deles, considerando a pontuação máxima de 33 pontos em cada um dos critérios (sim, o total jamais será pontuado, pois no caminho da humanidade, depois de cada horizonte atingido, surge outro a ser alcançado). 


País

Liberdade de expressão

Igualdade econômica

Desmilitarização do cotidiano

Escala IDEAL

Brasil

20

5

10

35

Estados Unidos

25

10

20

55

França

30

15

20

65

Cuba

5

30

5

40

Inglaterra

30

20

35

75

Argentina

25

10

15

50



É preciso notar que França e Inglaterra possuíam colônias até recentemente, as quais foram mantidas com sangue e suor dos colonizados. Junto com os Estados Unidos e China, possuem arsenal nuclear e estão entre os grandes responsáveis pelas mudanças climáticas. Cuba enfrenta um bloqueio norte-americano há décadas que a impede de baixar a guarda e liberar a expressão e se desmilitarizar.

Voltemos à China, o motivo da pergunta do meu amigo.

Considerando o grande controle social dos meios de comunicação, eu daria à China nota 5 para liberdade de expressão; para a grande distribuição da riqueza entre um número imenso de pessoas, mas com o número crescente de bilionários chineses, nota 25; a presença maciça do exército em todas as atividades cotidianas e políticas, nota 5. Portanto, 35 seria o total de pontos.

Veja que coincidência: o mesmo do Brasil!

Talvez seja indispensável acrescentar como fatores de correção componentes do indicador IDEAL a presença ou não de racismo e machismo institucionais e estruturais, de arsenal nuclear e de sua política de conter ou não os danos ao meio ambiente. Estes fatores de correção, se aplicados à tabela acima, provavelmente reduziriam a maioria destes países para abaixo dos 30 pontos, ou seja, nada parecidos com democracias.

Talvez alguém mais sério do que eu possa testar se este IDEAL é uma boa hipótese para compreendermos melhor as diferentes sociedades humanas.

Ou talvez já exista algum indicador com estas características e a minha ignorância ilimitada é que me levou a ousar uma ideia tão fora da realidade: ora, direis, IDEAL! Por certo perdeste o senso, dir-me-ão em seguida.



Lor

1/1/2021


PS: Juliano me lembra que existe um site do grupo The Enonomist (ver aqui: https://en.wikipedia.org/wiki/Democracy_Index ) que classifica os países segundo o seu grau de democracia.
De fato, é muito interessante e os indicadores dos países que usei na minha metáfora são parecidos na parte de liberdade de expressão.
O interessante é notar que a direita não considera a igualdade econômica como parte da democracia. Eu considero, pois um indivíduo com bilhões de dólares tem uma "liberdade" muito diferente de um desempregado brasileiro.





Comentários

  1. Merece ser enviado para publicação na grande mídia, talvez com o QI de algum amigo seu. Provocativo e substancioso. Merece ser discutido mais amplamente. Parabéns

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