Por quem os sinos silenciam?

 

Minha mãe avaliava a plenitude e a qualidade da vida de uma pessoa pela quantidade de gente no seu velório e sepultamento. Nada poderia ser, para ela, mais triste do que constatar o enterro solitário de alguém. Por maior que tivesse sido a vida vivida por aquele falecido, sua grandeza poderia ser perdida se o morto não recebesse as derradeiras homenagens das amizades que cultivara durante sua existência.

Os neurocientistas vêm demonstrando que mamãe estava certa. Eles descobriram que a alma humana funciona com um viés psicológico chamado “efeito pico-fim”, segundo o qual avaliamos nossa experiência emocional a partir de dois momentos: o ponto máximo (de dor ou de tristeza, alegria etc.) e o final daquela experiência. Nossa mente soma estes dois momentos e divide o total por dois: o resultado é nossa lembrança emocional daquilo que foi vivido.

A pandemia vem nos impossibilitando de despedir, de comparecer ao velório e sepultamento de pessoas amigas e queridas, impedindo-nos de criamos um momento final de dignidade e respeito por aquela vida que se vai. Pela métrica de minha mãe e dos neurocientistas, a qualidade e importância destas vidas, muitas delas longas e cheias de grandes histórias, foram rebaixadas forçadamente a um final sem homenagem, sem amigos e parentes, sem o reconhecimento do humano que existe em nós. Apenas três ou quatro pessoas autorizadas a testemunhar o barulho da terra sendo empurrada sobre a cova, selando a perda definitiva de uma parte de nós.

Não há sinos dobrando, não há cortejo fúnebre a percorrer alguma estrada simbólica que nos remeta à passagem daquela pessoa por entre nós. Nada a indicar a possível dignidade e ligações afetivas de quem está partindo, apenas o silêncio frio dos hospitais, os procedimentos técnicos das funerárias, o trabalho estoico e anônimo dos coveiros e uma oração, inaudível por causa do abafamento das vozes causado pelas máscaras de dois ou três parentes.

Este apagamento traumático de tantas histórias recai sobre a vida daqueles que continuamos sobreviventes, ausentados da presença do ente que se foi, desvalorizados em nossas próprias existências, cujos sentidos se constroem nos laços de amor, amizade, companheirismo e solidariedade.

Os neurocientistas descobriram também que somos incapazes de lidar com grandes números, então nossa indignação não aumenta de forma proporcional quando passamos de uma para algumas mortes, depois para 30, para 1200, 50 mil... Assim, vamos nos tornando involuntariamente insensíveis, enquanto acompanhamos à distância, dia a dia, os milhares de corpos sendo sepultados em série. Junto com eles é enterrada parte da nossa empatia, o principal valor que nos constitui como seres humanos.

Por isso, boicotar o sistema de saúde no combate à pandemia é crime contra a humanidade. Um crime hediondo, na dimensão crescente das atuais 200 mil mortes no Brasil, grande parte delas evitáveis se não estivéssemos sendo governados por criminosos de extrema direita.

Que no próximo ano tenhamos a força necessária para criarmos maneiras de fazer o principal responsável e sua horda pagarem pelo genocídio que estão cometendo.

Nesse dia, os sinos haverão de dobrar em homenagem aos mortos que se foram em silêncio compulsório e assim resgataremos um pouco a nossa despedida, para que a dignidade da vida possa retornar.



Lor

30/12/20

O título remete ao “Por quem os sinos dobram” de Hemingway, um romance que se passa durante a Guerra Civil Espanhola, quando brigadas de voluntários socialistas de várias partes do mundo, inclusive do Brasil, se uniram para combater os fascistas.

A colega e amiga Sandra Avelar enviou o site "Inumeráveis", onde os familiares das pessoas mortas por COVID estão postando mensagens de despedida. Ver aqui: https://inumeraveis.com.br/ 

A médica e amiga Sara de Castro Oliveira enviou o comentário abaixo: 
"Lindo e emocionante o seu texto! Embora minha avó não tenha falecido por COVID, a sensação de abandono daquele velório restrito e a rapidez em que foi necessário fazer a despedida foram cruéis. Chorei demais: pela partida dela e também porque achei que a despedida não foi à altura de uma mulher que criou 7 filhos sozinha, na pobreza, com força e com muita coragem. Ela ficou quase 50 dias no CTI. Foi uma luta convencer a equipe médica, meus tios e minha mãe que já era hora de parar os cuidados intensivos. Eu precisava ajudá-la a partir. Era a última coisa que poderia fazer por ela. Permitir que fosse embora sem mais hemodiálise, sem noradrenalina, sem ventilação mecânica. Como foi útil ter lido o livro "Mortais" de Atul Gawande. Mas entre parar as medidas e o óbito foram quase 8 dias. Eu ia toda tarde e pedia: vozinha, vai embora. Estamos em paz. Foram dias difíceis. Mas quando ela foi, me senti em paz.





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