País de todos ou pátria amada?





Vejo que vários governos já estão vacinando sua população contra o coronavirus e imagino se estes governantes são pessoas que se sentem parte de um povo, ou se assumem como líderes de uma nação ou aceitam a responsabilidade pela defesa dos cidadãos de seus próprios países. Entre nós, aqueles que dizem amar a pátria preferem nada fazer para salvar milhares de vidas, que poderiam ser poupadas pela vacinação em massa.

Há uma lógica perversa nesta escolha genocida, além do desprezo pela ciência e pelo bom senso? Talvez a palavra pátria contenha em si os signos necessários para penetrarmos nas mentes sombrias que nos governam nestes tempos. Qual é o sentido no qual os amantes do verde-amarelo das bandeiras e hinos transformaram o conceito de pátria?

Dizem que nós, enquanto bebês, somos egoístas natos até uma certa idade, pois preferimos destruir o terceiro biscoito do que permitir que o outro bebê fique com dois e nós apenas com um. No começo de nossas vidas, gostamos das pessoas próximas e temos medo dos desconhecidos. Nosso crescimento ideal é acompanhado de uma progressiva ampliação do círculo familiar: do meu umbigo para os pais e irmãos, depois para os parentes e amigos, depois para a tribo... e pronto. Duzentos e cinquenta pessoas, no máximo. O resto será o desconhecido, o estrangeiro, o “outro”, o inimigo, o rato, o verme... dependendo dos gatilhos sociais que foram acionados oportunamente para que não tenhamos empatia nem compaixão para com as pessoas de fora do “nosso” círculo.

Dizem que nossa mente foi condicionada por milhares de anos para sobrevivermos neste círculo tribal restrito, cujos limites podem ser delineados pela idade, pelo sexo e por um terceiro fator, que vai da cor da pele à cor da camiseta do time, do som de um hino nacional ao sotaque da nossa região, do uniforme profissional à farda de combate...

É preciso um salto de altruísmo racional para a construção de ideias abstratas de cooperação mútua em sociedades maiores do que as tribos. É necessário rompermos nossa proteção egoística infanto-juvenil para ultrapassarmos as barreiras bairristas de nossa mente e nos sentirmos pertencentes a um Povo, depois a uma Nação, a um Estado, depois a um País, a um Continente, a um Planeta e... ao Universo. Haja poesia e altruísmo para compreendermos que somos pó das estrelas.

Nesta libertação da mente tacanha, indo da família para as galáxias, não encontro lugar geográfico ou demográfico para a palavra pátria. Ela não define um grupo, uma história concreta ou uma localização: ela é abstrata, impregnada de um determinado afeto narcisista e de uma visão de mundo. Ou seja, pátria é um conceito ideológico.

Ao contrário da expansão humanista que vai da família para as constelações sociais e planetárias, a palavra pátria força o caminho inverso da ampliação da mente, com sua ideologia restritiva e seus significados supremacistas. A pátria é construída à imagem e semelhança de quem detém o poder e a proclama como sua, fruto dos seus desejos de superioridade e alimentada na sua vaidade. Quem a inventa pretende que ela paire acima de todos, mas quando alguém grita “pátria amada”, nada mais é do que uma declaração de amor bumerangue, que enaltece o próprio peito onde se bate a mão espalmada.

Nesta auto exaltação patriótica se consolida o apoio renitente dos adeptos de um presidente que radicaliza os significados das palavras pátria e família (ainda que, internamente seja uma família muito competitiva, pois Bolsonaro foi capaz de dizer, ao vivo em rede social, disputando a popularidade com um de seus filhos, que ele, Eduardo, não recebera nenhum voto, pois os votos dados a ele, filho, haviam sido, na verdade para o pai!).

Estas proclamadas pátria e família acima de tudo alimentam os corações dos partidários deste presidente para que eles resistam à democratização da vida e sigam o caminho de volta à família primitiva. Por isso, eles tentam:

desconstruir a visão científica do Universo (que aponta nossa origem estelar, a evolução das espécies, os riscos do coronavirus e nossa insignificância diante do Cosmos),

desacreditar as organizações planetárias (como acordos do clima, recomendações da Organização Mundial da Saúde),

arrasar o país (por exemplo, passar a boiada para permitir o desmatamento, as queimadas e a exploração econômica sem limites),

desmontar o Estado (não fornecendo a vacina, destruindo a fiscalização de armas, liberando as normas de trânsito e retirando direito dos trabalhadores),

ressignificar a nação como apenas aqueles que pertencem ao seu grupo ideológico (os demais são traidores, petralhas, bandidos),

denominar de meu povo as milícias que os apoiam digital e fisicamente,

e colocar acima de tudo (ou de todos, nunca me lembro bem) um certo deus, o deus da sua tribo, o deus da sua família.

Quem nos governa, neste momento, são estas famílias disfuncionais, nas quais pais, filhos e parentes estão todos aprisionados numa certa idade, antes da socialização, e cheios de medo e ódio decidem destruir o terceiro biscoito, pois ainda não aprenderam as operações de somar e dividir.

Talvez devêssemos ter inventado antes uma vacina contra a doença infantil e contagiosa do egoísmo, para que todos pudéssemos ter, quem sabe a tempo, uma vacina contra o coronavirus, como vem acontecendo no resto do mundo um pouco mais adulto.



Lor

Dezembro 2020



Nota 1: o título naturalmente nos remete para a diferença entre o lema do governo Lula e do atual governo. Já fomos mais maduros como povo. Ou seria como nação?

Nota 2: Homenagem ao Caetano, que cantou: não quero pátria, eu quero mátria, quero frátria!

Nota 3: Obrigado Fátima Busko por me indicar a leitura do Paul Bloom “O que nos torna bons ou maus”.

Comentários

  1. Obrigado Lor por este presente atemporal e sempre aprendendo com vc. Agora mesmo estava discutindo com meu filhos, que Ruy Barbosa, co-fundador da ABL com Machado de Assis e seu segundo Presidente (ambos negros), foi Ministro da Fazenda e queimou todos os Documentos que os senhores dos escravos estava reivindicando da nossa "matria" o dinheiro que gastaram com a compra daquelas pessoas que do nosso continente ao lado

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