Delusão

 


Conheci M. muitos anos depois que seu pai havia se matado e convivemos por décadas em razão de algum parentesco. Seu jeito de ser e suas excentricidades foram aumentando à medida que envelhecia, até que a pandemia fez aflorar por completo uma personalidade que estivera semioculta, ainda que possa parecer que deveria ter sido óbvia.

Ao longo da vida, M. colecionara empregos, mulheres e mudanças de endereço, trocando de uma situação para outra após decisões abruptas motivadas por um impulso decisivo e irrevogável, geralmente originado na suspeita de que havia algo de muito errado com aquele trabalho, aquela mulher ou aquele apartamento. Pegava-nos de surpresa e jamais compreendíamos bem as causas de suas guinadas na vida.

Apesar disso, M. não me parecia tão fora assim dos padrões, porque num momento a crise era o emprego, noutro o casamento ou, mais adiante, o endereço. E íamos levando seu modo de ser, o que incluía às vezes opiniões preconceituosas revestidas de condescendência contra os pobres, a quem atribuía menor capacidade natural para enfrentar a vida. Confrontado sobre isso, transformava em brincadeira o que acabara de dizer seriamente.

Um sinal de alerta ocorreu-me quando M. ofereceu para contratar capangas para darem uma surra no inquilino de um amigo seu que reclamara que o sujeito se recusava a devolver o apartamento alugado. Eram frequentes as soluções agressivas, intimidatórias ou mesmo violentas imaginadas por ele para situações cotidianas de conflitos mínimos. Numa vez em que viajávamos de carro, sem qualquer motivo aparente, M. suspeitou que estávamos sendo seguidos por outro veículo e mandou que eu diminuísse a marcha, retirando de sua maleta uma pistola automática que manteve no colo até que o outro carro nos ultrapassasse e fosse embora. Achei aquilo pitoresco, mas não levei muito a sério: naqueles tempos andar armado era comum e eu mesmo agia assim.

Frequentemente, M. recorria ao lema da ordem como fundamento de qualquer desenvolvimento social e por isso admirava os militares e possuía amigos nas forças de segurança. Considerava a ditadura militar como uma resposta ao caos que estava se estabelecendo no país na década de sessenta, achava que as mortes haviam ocorrido de ambos os lados e que a tortura... bem, numa guerra não dá para ser bonzinho com o inimigo. Qualquer manifestação percebida por ele como afrontamento à ordem causava-lhe grande desconforto e abominava passeatas, greves ou um mero cartaz de protesto colado no muro de seu prédio (que ele arrancaria no meio da noite).

Idolatrava os Estados Unidos como o império da lei e pensava em se mudar para a Flórida, assim que conseguisse juntar dinheiro suficiente. Submissamente, achava merecida a discriminação que sofrera como latino americano nas vezes em que estivera viajando por lá, pois brasileiros são bagunceiros mesmo, afirmava com um sorriso irônico de distanciamento dos seus colegas de pátria e pele.

Com os anos, todos estes modos de ser foram se acentuando e M. foi se irritando progressivamente com o que pensava ser uma conspiração internacional para a esquerdização do mundo. Ele ridicularizava o politicamente correto, ignorava as leis em vigor sobre porte de arma e negava veementemente a existência de racismo estrutural entre nós, pois dizia que tinha parentes pretos, o que provaria que a mistura racial brasileira teria diluído nossas diferenças. Acima de tudo, passou a odiar as críticas ao machismo, pois se sentia pessoalmente ofendido com qualquer menção às diferenças de direitos entre homens e mulheres.

Nos últimos anos estava aposentado num cargo mediano, reclamando da politicagem na empresa, que teria conspirado contra ele, prejudicando-o na careira por causa de sua suposta franqueza e honestidade.

Então veio a pandemia de coronavirus.

A pandemia trouxe a morte para um contato imediato de primeiro grau conosco, espalhando medo e ansiedade por todo o planeta e M. não ficou imune a esta ameaça. Ele reagiu intensamente às suas próprias probabilidades de risco, tornando-se obcecado pelo assunto, consumindo o noticiário e gastando horas nas redes sociais, buscando ordenar o mundo à força da sua própria imaginação para encontrar causas e efeitos para a pandemia. Passou a descobrir padrões significantes no acaso, escolhendo opções mais próximas da sua intuição e reduzindo sua abertura às informações mais complexas. Incomodava-se profundamente com as contradições, especialmente as científicas, e detestava a dúvida e a incerteza.

Delusão é uma crença que não se sustenta na realidade [1] e faz parte dos sintomas de algumas doenças mentais, mas também pode ser desencadeada por traumas profundos. 

Neste estado de espírito, M. construiu sua própria narrativa sobre o que ele chama de a praga chinesa: o vírus teria sido intencionalmente criado para prejudicar os Estados Unidos, abrindo as portas para a dominação econômica e política pelos comunistas chineses. Ele tinha certeza que a tecnologia 5G chinesa seria uma forma de espionagem e por isso o presidente Trump tornou-se alvo de mentiras e ataques, pois ele seria o verdadeiro defensor do Ocidente, já que as demais lideranças teriam sucumbido aos esquerdistas, como a Alemanha.

Esta onda internacional conspiratória atingiria os amigos de Trump, como Bolsonaro, que também seria vítima de calúnias patrocinadas por poderosos interesses globais e midiáticos. Por isso, a grande imprensa e cientistas de esquerda criticariam a defesa que ele faz da cloroquina como tratamento para a pandemia de COVID-19. A Rede Globo fingiria não saber que Bolsonaro teria acesso a informações privilegiadas, confidenciadas a ele secretamente por Trump, que provariam a eficiência do medicamento. Então, M., apesar de pertencer a um grupo de risco, passou a usar cloroquina preventivamente, não usar máscaras e nem se proteger com o isolamento social. Neste caminho, M. se aproximou de outras pessoas com ideias semelhantes e cortou relações com as demais que discordassem, inclusive eu.

Perdi seu contato, mas recentemente o reconheci na foto de uma manifestação de rua, com um cartaz dizendo que não precisamos de vacinas, pois temos a cloroquina.

Inesperadamente, lembrei-me de seu pai. Pensei que deve ser terrivelmente traumático para uma criança perder o pai por suicídio, ser abandonado por aquela pessoa amada e admirada, que leva embora com ela toda a ordem do mundo e nos lança cruelmente na realidade imprevisível, caótica e insegura. Talvez a sombra daquela morte se estenda pelo resto de sua vida, corroendo as ligações amorosas com os outros. Se nem mesmo meu pai foi capaz de me amar o suficiente para não se matar...

Talvez haja elos profundos entre a arma disparada por seu pai, que destruiu a sua realidade, e a atitude de um homem idoso, colérico, numa rua, segurando um cartaz irracional, desesperadamente tentando construir alguma lógica para o mundo, um sentido para a vida, a sua delusão.

Ou, talvez, essas conexões não passem de outra delusão. Minha, desta vez.



LOR

Setembro de 2020

Obrigado pela leitura Thalma, Eduardo e Nilo.












[1] Talvez seja mais apropriado dizer que delusão seria uma crença que não se sustenta na realidade, mas não faz parte das demais crenças da maioria da população, mesmo que elas também não se sustentem na realidade. Por exemplo, por enquanto, crer que a terra seja plana não é um pensamento compartilhado pela maioria da população e esta crença seria uma delusão. Por outro lado, crer que existe um deus criador do Universo e que se preocupa com você já não seria considerada uma delusão, porque muita gente acredita nisso, apesar da falta de evidências.

Vale a pena ver um ensaio sobre a complexidade dos mecanismos da delusão aqui: https://aeon.co/essays/delusions-take-root-in-minds-searching-to-explain-difficult-experiences?utm_source=Aeon+Newsletter&utm_campaign=5e8c524cf5-EMAIL_CAMPAIGN_2020_09_04_01_44&utm_medium=email&utm_term=0_411a82e59d-5e8c524cf5-69554237

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