Assalto às mãos desarmadas

 

Suas mãos hábeis e delicadas

trazem à vida a inerte e inválida bruta pedra,

extraindo dela ocultos desejos futuros,

esculpindo escadas, espadas de aço e silício,

interfaces eletrônicas, esculturas monumentais

e o cimento dos edifícios

que repartem os céus em geometrias.

 

Suas mãos,

outrora livres,

foram capturadas e postas sob a força,

numa história engendrada pelo acaso,

feita de guerras sórdidas e ímpetos passados,

que reservou para alguns a Terra

e para outros o suor e o nada.

 

Suas mãos escravizadas

moeram pedras à força da chibata,

sob o terror dos capitães do mato,

para receberem em troca

o miserável mingau por elas mesmas preparado,

ao fim de cada dia de infindável trabalho,

para restarem calejadas e adormecidas

num cansaço de dor e quase morte.

 

Suas mãos,

depois de abolidos os grilhões,

pareciam livres, mas perderam o direito

às enxadas, facões, arados e alicates,

e à matéria prima de todo seu engenho e arte,

que foram inapropriadas

legalmente

pelos velhos senhores.

Restaram às suas mãos os gestos desesperados

de implorar qualquer trabalho por um prato de comida,

ou uma dose de cachaça,

para não morrer de fome ou banzo na periferia.

 

Suas mãos,

empalidecidas pela anemia de tudo,

desde então aceitam

dos filhos dos filhos dos senhores

pedaços de rochas, minérios fecundos,

para os moldar em máquinas e computadores,

em troca de uns pães e uns panos,

uma passagem de metrô,

um canto qualquer num barraco,

para acordar vivo amanhã.

 

Suas mãos,

fontes únicas da riqueza humana,

seguem sobrevivendo apartadas em guetos,

camufladas em estratos de renda,

confinadas em currais de mão de obra de reserva,

transformando a matéria do mundo primal

em maravilhas a serem usufruídas por outras mãos,

aquelas metidas nas luvas de pelica das leis, polícias e milícias,

as mãos visíveis do mercado,

abençoadas com o sangue dos impérios e monopólios.

 

Suas mãos,

capazes de transformar pedras em poemas,

estão proibidas de tocar o ouro

que elas mesmas arrancaram da terra,

impedidas de saber a textura da felicidade,

a maciez dos lençóis de linho,

a consistência das frutas importadas,

ou a suprema hierarquia dos helicópteros.

Às suas mãos restam as latas de lixo,

o esgoto a céu aberto, a pandemia incoercível,

o trânsito estagnado e a insônia permanente.

 

Suas mãos,

capazes de escrever constituições e satélites,

são manietadas desde o nascimento

pelos mitos da propriedade sagrada dos reis,

da liberdade ilimitada dos ricos

e da competição legítima entre fortes e miseráveis,

para serem roubadas,

em quase toda a riqueza que produzem

diariamente

por mãos armadas com um salário.

 

 

LOR

Setembro 2020

 

 

 

 

 

 

 


Comentários

  1. Há muito não lia algo tão belo e tão triste. Vc conseguiu resumir em algumas linhas as iniquidades de uma sociedade dita humana. Poema síntese, espetáculo de sensibilidade que só os verdadeiros artistas portam!

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