Quem vai lancetar?
(Texto publicado hoje no Boletim Matinal da Faculdade de Medicina da UFMG, a convite do professor Unaí Tupinambás @ufmgboletimcovid )
Estou otimista como diante de um abscesso. Há dor, o pus se acumula, perde-se o movimento habitual, mas há uma possibilidade de recuperação, se houver pessoas capazes de lançar mão de um bisturi para lancetar o tumor, permitindo que o organismo supere a infecção.
Temos estado assim, prostrados pela dor aguda de uma pandemia que transtornou o mundo de antes, expondo nossa fragilidade imunológica contra o modo de vida que vínhamos levando, apesar dos sintomas premonitórios de que algo não andava bem: aumento da desigualdade social, aquecimento global e governos negacionistas da realidade se espalhando pelas democracias.
Ignorando as advertências do nosso organismo humano, insistimos no consumismo alucinado, na intoxicação pelas redes sociais, no sedentarismo político da indiferença ao populismo e à discriminação dos mais pobres. Clicamos mais vezes em gatinhos fofos do que lamentamos a derrubada das florestas e os imigrantes abandonados em alto mar.
Descuidados, fomos surpreendidos pelo coronavírus, que interrompeu nossa euforia esquizoide e obrigou-nos a desligar muitos motores: então descobrimos que os céus podem voltar a ser azuis. Reconhecemos que as telas dos smartfones são menores do que nossa saudade porque desejamos abraçar pessoas, e que é preciso ter vida interior para permanecermos em casa até que uma vacina ou medicamento sejam descobertos.
Muitas pessoas vestiram seus jalecos em solidariedade e foram arriscar suas vidas dentro dos hospitais, enquanto outras berraram suas bandeiras amarelas do lado de fora, menosprezando do alto de sua hierarquia social o sofrimento e a morte dos outros. As divisões antigas se aprofundaram, o ódio tenta dominar a razão, a epidemia aprofunda sua predileção pelos mais pobres e a ignorância se tornou o pus de um abscesso social que vinha se formando no âmago de nossa humanidade.
No entanto, mantenho meu otimismo porque podemos lancetar este tumor, como já fizemos de outras vezes. A história dos últimos quinhentos anos, incluindo momentos semelhantes a este que estamos vivemos, aponta uma tendência para o aumento dos direitos humanos, da democracia, do feminismo e uma redução da pobreza, do racismo, do machismo e da violência geral [1].
Não, a febre do abscesso não está me fazendo delirar. Lembremo-nos do mundo como era há 100 anos: tudo o que hoje criticamos nas propostas políticas de Trump (e seus similares bolsoneros espalhados pelo mundo) era A LEI nas “melhores” democracias: nacionalismo extremado, colonialismo, machismo, mulheres não votavam, homossexuais eram punidos com prisão, negros e outras etnias viviam em regimes de segregação, muitos cientistas acreditavam em eugenia e havia um culto à violência como elemento purificador da humanidade (inclusive na esquerda política) (VER AQUI mais detalhes).
Passamos por outra pandemia semelhante à atual e espero não termos que passar por duas guerras mundiais novamente para darmos mais um passo em direção à construção de uma sociedade mais justa e democrática, como fizemos com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1949.
Quem há de vestir seu jaleco branco, verde, negro ou multicor para lancetar este abscesso atual? Quem há de combinar direitos humanos, democracia e multiculturalismo com economia ecologicamente sustentável, redução da militarização e igualdade social?
Há gente calçando as luvas. Não aquelas da elite, mas as luvas de procedimento.
LOR
[1] Ver “Os anjos bons da nossa natureza” e “Humanismo agora” de Steve Pinker.
Temos estado assim, prostrados pela dor aguda de uma pandemia que transtornou o mundo de antes, expondo nossa fragilidade imunológica contra o modo de vida que vínhamos levando, apesar dos sintomas premonitórios de que algo não andava bem: aumento da desigualdade social, aquecimento global e governos negacionistas da realidade se espalhando pelas democracias.
Ignorando as advertências do nosso organismo humano, insistimos no consumismo alucinado, na intoxicação pelas redes sociais, no sedentarismo político da indiferença ao populismo e à discriminação dos mais pobres. Clicamos mais vezes em gatinhos fofos do que lamentamos a derrubada das florestas e os imigrantes abandonados em alto mar.
Descuidados, fomos surpreendidos pelo coronavírus, que interrompeu nossa euforia esquizoide e obrigou-nos a desligar muitos motores: então descobrimos que os céus podem voltar a ser azuis. Reconhecemos que as telas dos smartfones são menores do que nossa saudade porque desejamos abraçar pessoas, e que é preciso ter vida interior para permanecermos em casa até que uma vacina ou medicamento sejam descobertos.
Muitas pessoas vestiram seus jalecos em solidariedade e foram arriscar suas vidas dentro dos hospitais, enquanto outras berraram suas bandeiras amarelas do lado de fora, menosprezando do alto de sua hierarquia social o sofrimento e a morte dos outros. As divisões antigas se aprofundaram, o ódio tenta dominar a razão, a epidemia aprofunda sua predileção pelos mais pobres e a ignorância se tornou o pus de um abscesso social que vinha se formando no âmago de nossa humanidade.
No entanto, mantenho meu otimismo porque podemos lancetar este tumor, como já fizemos de outras vezes. A história dos últimos quinhentos anos, incluindo momentos semelhantes a este que estamos vivemos, aponta uma tendência para o aumento dos direitos humanos, da democracia, do feminismo e uma redução da pobreza, do racismo, do machismo e da violência geral [1].
Não, a febre do abscesso não está me fazendo delirar. Lembremo-nos do mundo como era há 100 anos: tudo o que hoje criticamos nas propostas políticas de Trump (e seus similares bolsoneros espalhados pelo mundo) era A LEI nas “melhores” democracias: nacionalismo extremado, colonialismo, machismo, mulheres não votavam, homossexuais eram punidos com prisão, negros e outras etnias viviam em regimes de segregação, muitos cientistas acreditavam em eugenia e havia um culto à violência como elemento purificador da humanidade (inclusive na esquerda política) (VER AQUI mais detalhes).
Passamos por outra pandemia semelhante à atual e espero não termos que passar por duas guerras mundiais novamente para darmos mais um passo em direção à construção de uma sociedade mais justa e democrática, como fizemos com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1949.
Quem há de vestir seu jaleco branco, verde, negro ou multicor para lancetar este abscesso atual? Quem há de combinar direitos humanos, democracia e multiculturalismo com economia ecologicamente sustentável, redução da militarização e igualdade social?
Há gente calçando as luvas. Não aquelas da elite, mas as luvas de procedimento.
LOR
[1] Ver “Os anjos bons da nossa natureza” e “Humanismo agora” de Steve Pinker.
LOR como sempre brilhante. Expoente maior do cartum, nos presenteia com esta bela crônica sobre o momento pelo qual passamos e sobrevivemos. Além disso, nos conforta com uma mensagem de otimismo baseada no enfrentamento das adversidades rumo a uma sociedade justa e fraterna. Abraços. Tarcísio Lemos
ResponderExcluirAlguém otimista! Que isso seja contagioso!
ResponderExcluirCaro Lor, boa tarde!
ResponderExcluirEspero você e Talma estejam bem.
Vocês não me conhecem.
Mas eu fiz um curso na sala de Multimeios com vocês aos sábados a tarde se não me engano em 1978. Era sobre Cartuns. Vocês convidavam cada sábado um cartunista. Passaram-se muitos anos e hoje só me lembro de Henfil e Elifas Andreato.
Foi neste evento que conheci a Biblioteca Pública Luiz de Bessa e estou a escrever um texto sobre Espaços de Leitura.
Será que você teria como me informar o nome dos outros convidados?
Seria muito bom para ilustrar minha história. Estávamos na ditadura.
Aprendemos tanta coisa interessante no curso. Lembro que um sábado levei minha filha mais velha que hoje tem 44 anos.
Espero não estar incomodando. Já agradeço. Silvana Maria Fernandino