Meu medo do abismo




O sentimento angustiante que perpassa meus gestos cotidianos se acentuou nos últimos dias com a escalada de sucessivas rupturas da malha institucional que nos constitui como sociedade, fazendo-me perder o sono, o sorriso e a saúde, como se eu estivesse diante de uma antiga ameaça que, de repente, se transformou de risco crônico em perigo iminente.

Há alguns anos visitei os cânions no nordeste do Rio Grande do Sul, na divisa com Santa Catarina. No primeiro, Itaimbezinho, com centenas de metros de profundidade, há uma cerca com cabos de aço um pouco antes do precipício, o que nos permite ver a paisagem belíssima sem que insegurança nos envolva. No outro, o cânion Fortaleza, não há nenhuma proteção ao longo das margens do abismo, de tal forma que, a poucos metros da borda, meu pavor de uma queda foi tão grande que percorri de gatinhas os centímetros finais, arriscando uma olhadela nas profundezas e retornando a uma distância prudente. Alguns turistas se aproximavam perigosamente em pé, davam as costas para o buraco e faziam selfies, arriscando suas vidas, atitude que já levou a diversos casos de quedas fatais no despenhadeiro. Não consegui permanecer muito tempo vendo aquelas pessoas temerárias e me retirei em definitivo depois de poucos minutos de ansiedade.

Esta memória tem retornado à minha consciência nos últimos dias. Talvez haja algum paralelo com a situação que estamos vivendo em nosso país.

Sabíamos do profundo fosso há muito existente entre a elite econômica e o restante da população. Conhecemos sua origem na colonização predatória dos portugueses e na tragédia da escravidão interminável que permanece viva no sangue derramado pelos negros mortos nas periferias. Este abismo sempre esteve aí, mas parecia ser o Itaimbezinho, aquele com a cerca de cabos de aço, talvez uma metáfora das frágeis instituições planejadas para serem democráticas e do esforço de parte da sociedade para a construção de uma ética solidária nacional.

Parecia haver no Brasil uma espécie de cerca de segurança construída com fios um certo pudor nacional, aquela vergonha da elite econômica de admitir explicitamente seus reais desejos, que no íntimo sempre foram escravocratas, machistas, racistas, homofóbicos e defensores da ditadura e da tortura para manter seus privilégios.

Estes sentimentos elitistas vinham sendo sufocados pela onda democrática que se estabeleceu depois da Segunda Guerra Mundial (ver abaixo, texto anterior sobre os 100 anos de Bolsonaro).

Nos últimos dias, a brutalidade armada daqueles que querem voltar ao passado nos levou para o outro cânion, o Fortaleza (sem trocadilho com o estado do Ceará), aquele sem quaisquer barreiras, onde estamos perigosamente à beira do precipício de uma profunda ruptura social, uma espécie de guerra civil na qual um dos lados não possui armas, nem milícias, nem poder, e apenas recebe as balas, a violência e as outras consequências do desmonte do estado brasileiro.

Impossível não sentir medo.

Medo de nos precipitarmos no abismo da ingovernabilidade nas mãos de milícias municipais, estaduais e federais.

Medo do futuro imediato da violência pessoal dirigida a todos que se opuserem ao caminho das familícias. Medo do amanhã, acrescentado ao medo do futuro ambiental e planetário.

Camadas de medo que vão se superpondo sobre minha alma aterrorizada.

E não consigo encontrar meios de despertar desse pesadelo histórico. 


A não ser, como disse Meryl Strip, tentar transformar em arte meu coração partido.





Os 100 anos de Bolsonaro (publicado em setembro de 2018)


As ideias de Bolsonaro já foram leis em muitos países democráticos e boa parte da população se sente mais segura no passado.

A eleição de 2018 parece mais focada na discussão de costumes do que na solução dos problemas econômicos e sociais. No início do século passado, várias das ideias que hoje definem os eleitores brasileiros de direita eram dominantes entre os povos e elas faziam parte do arcabouço legal da maioria dos países, desenvolvidos ou não.

O machismo, por exemplo, era instrumentalizado por leis que determinavam a inferioridade das mulheres, as quais eram impedidas de votar, eram restringidas no seu direito de trabalhar fora de casa e, quando elas o conseguiam, recebiam (como ainda recebem) salários inferiores aos homens[i]. Mulheres não deveriam estudar, mas apenas se dedicarem a cuidar dos maridos e dos filhos, podendo ser abusada sexualmente pelos homens (sem direito a processar o marido) e severamente punidas se realizassem o aborto.

Leis racistas que vigoravam há um século alimentavam-se de falsas informações científicas, que “provavam” o ideal de purificação das raças e a supremacia branca, e impunham a todos a discriminação social pela cor da pele, condenavam os casamentos entre pessoas de “raças” diferentes e indicavam a esterilização de pessoas pobres, doentes e deficientes[ii].

Mesmo nos países desenvolvidos e democráticos eram comuns leis baseadas na homofobia, que incluíam punições rigorosas da homossexualidade (inclusive com a prisão, castração química e pena de morte) que atingiam mesmo os heróis de guerra, como o cientista Alan Turing, que auxiliou os Aliados a vencerem a guerra ao desenvolver um computador capaz de desvendar os códigos secretos dos nazistas[iii]. Além disso, a existência da lei contra os homossexuais incentivava e acobertava a violência generalizada e homicídios frequentes que atingiam milhares de pessoas por causa de sua orientação sexual.

Todas as ideologias da época (inclusive de esquerda) glorificavam a necessidade da violência da guerra como a continuidade da política e exaltavam o patriotismo exacerbado, no qual todo cidadão era obrigado a se submeter absolutamente às normas da maioria e a considerar o seu país o melhor dentre os demais[iv]. A crença generalizada nestas supostas diferenças entre os povos justificava a colonização brutal de muitos países pelas grandes potências brancas. Os povos pobres e não brancos eram responsabilizados pelo seu próprio atraso por serem “naturalmente” preguiçosos, indolentes, malandros e improdutivos[v].

A intolerância religiosa era um comportamento habitual e chancelado pelo Estado, o que resultou em genocídios pavorosos em nome da supremacia de uma determinada religião. O poder político das igrejas, mesmo nos estados supostamente laicos, impunha por constrangimento legal comportamentos moralistas a todos. Na rasteira deste radicalismo religioso, por exemplo, o combate às drogas resultou na desastrosa Lei Seca que tentou banir pelas armas o comércio de álcool dos Estados Unidos[vi]. O juramento postando-se a mão sobre uma Bíblia ainda faz parte dos procedimentos legais naquele país.

Nas escolas, o ensino de ciência era proibido sobre aqueles temas que contradizem algumas religiões, como a Seleção Natural e a Evolução Humana. As descobertas científicas que questionavam a ideologia dominante eram relativizadas[vii] e combatidas por campanhas moralistas, as quais opunham à fé a Ciência, e se transformavam em leis que impediam, por exemplo, a discussão da sexualidade humana nas aulas de biologia em nome da proteção da inocência das crianças[viii].

Para completar, em 1929, neste caldo de cultura elitista, uma crise econômica grave levou à miséria um número enorme de trabalhadores em todo o mundo e o bode expiatório encontrado para o desemprego foram os imigrantes, os estrangeiros, os judeus, os diferentes, todos aqueles que passavam pelas fronteiras como refugiados para supostamente tomar o lugar dos pobres brancos desempregados[ix].


O resultado bem conhecido de tudo isto foi o crescimento das ideias nacionalistas extremadas que levaram ao expansionismo alemão, italiano e japonês, o que resultou na Segunda Guerra Mundial. Embora ambos os lados em conflito comungassem os fundamentos da ideologia elitista (machista, racista, xenófoba, nacionalista, moralista, guerreira e colonialista) a derrota dos nazistas (sua expressão mais radical) trouxe um retrocesso público nestas ideias e um movimento democrático de reparação dos danos causados pela guerra levou à Declaração Universal dos Direitos Humanos[x].

Desde a Declaração, a ideologia elitista veio perdendo adeptos enquanto a economia prosperou, a democracia se espalhou e as guerras e a violência diminuíram progressivamente[xi] (apesar de não ser esta a impressão subjetiva que temos ao ver as notícias!). No entanto, mesmo em meio às vantagens da paz, da redução do racismo e da internacionalização dos direitos, parte da população continuou a pensar daquela velha forma arcaica, mas permaneceu calada e retraída em suas manifestações públicas para não ser identificada com os criminosos nazistas.

Agora, o mundo sofre uma nova crise econômica desde 2008 e as políticas públicas dos estados democráticos que investiram no bem-estar social não estão sendo capazes de conter a insatisfação social. O mundo está economicamente muito melhor hoje do que no início do século passado, apesar de termos aumentado tremendamente a população, mas nossa expectativa de direitos cresceu simultaneamente. Assim, uma certa frustração com a democracia permitiu que as velhas vozes com um século de defasagem voltassem a ser ouvidas proclamando seus conceitos ultrapassados.

Há uma parcela da população que se sente melhor, mais protegida sob o manto do autoritarismo, do machismo, do moralismo, do patriotismo e da religião e isto pode ter raízes profundas no nosso comportamento primitivo[xii]. Atualmente, a parte da população que troca sua liberdade pelo medo parece estar crescendo diante da crise econômica e das mudanças culturais provocadas pela sociedade globalizada. Talvez seja preciso que se passe mais um século para que as pessoas que defendem estas ideias retrógradas possam adquirir confiança na democracia, na igualdade social, na ciência e nos Direitos Humanos como soluções duradouras para a maior felicidade da humanidade.

Nada mais velho do que a "nova política" de Bolsonaro.


[i] Ver defesa de Bolsonaro da diferença salarial entre homens e mulheres aqui: https://revistacrescer.globo.com/Familia/Maes-e-Trabalho/noticia/2015/02/jair-bolsonaro-diz-que-mulher-deve-ganhar-salario-menor-porque-engravida.html

[ii] Ver a defesa de Carlos Bolsonaro da esterilização de pessoas pobres como condicionante para receberem o Bolsa Família: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/bolsonaro-defendeu-esterilizacao-de-pobres-para-combater-miseria-e-crime.shtml

[iii] Ver biografia de Alan Turing: https://pt.wikipedia.org/wiki/Alan_Turing

[iv] Ver o lema Bolsonarista: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

[v] Ver declaração do vice de Bolsonaro, o Mourão, sobre nossa herança indígena e africana: https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2018/mourao-diz-que-brasil-herdou-indolencia-dos-indigenas-e-malandragem-dos-africanos-a73yblnaimou0dhs5t65rklki

[vi] Ver propostas de Bolsonaro para combater o tráfico de drogas nas favelas do Rio: avisar para os traficantes saírem e depois abrir fogo: https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/solucao-de-bolsonaro-para-rocinha.html

[vii] A recusa aos argumentos científicos muitas vezes se dá por meio daquilo que hoje chamamos de “fake news”. Ver o número de mentiras diárias pronunciadas pelo evangélico Trump, o ídolo de Bolsonaro, que acha que cientistas mentem para prejudica-lo: https://www.nytimes.com/interactive/2017/06/23/opinion/trumps-lies.html

[viii] Ver repúdio da Comissão de Direitos Humanos para a proposta da “Escola Sem Partido” http://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/participacao-social/old/cndh/resolucoes/Resoluon07escolasempartido_APROVADA.pdf/view

[ix] O Muro de Trump na fronteira com o México é um exemplo recente, mas parece que está caindo no esquecimento à medida que a economia americana se recupera.

[x] Ver aqui mais informações sobre a declaração https://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_Universal_dos_Direitos_Humanos


[xi] Ver dados apresentados pelo cientista canadense Steve Pinker em seus ótimos livros “Os anjos bons da nossa natureza” aqui: https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13271 e “O novo Iluminismo – em defesa da razão, da ciência e do humanismo” aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/Steven_Pinker

[xii] Ver Robert Sapolsky em seu livro “Behave” sobre os fatores comportamentais que levam as pessoas a se tornarem mais conservadoras ou mais liberais: http://lorcartunista.blogspot.com/2018/06/a-vida-e-um-algoritmo-imperativo.html



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