O erro generalizado





Alguns colegas médicos, não importam seus nomes ou titulações, defenderam publicamente que “na guerra contra o coronavirus, provavelmente a melhor opção tenha sido indicar um militar para comandar o ministério da saúde”, porque ele entenderia de guerra.

Se este comentário estivesse sendo feito durante ou após a “vitória” do tal comandante sobre as forças viróticas inimigas, teríamos que concordar ou pelo menos dar um voto de confiança diante do desfecho. No entanto, neste momento em que atingimos 80 mil mortos pela COVID-19 e somos o país com a mais alta taxa de mortalidade por dia, é uma afirmação que precisa ser analisada com cuidado.

A lógica destes colegas médicos é de que estamos numa “guerra” contra o vírus. Esta concepção militarizada dos problemas de saúde e sociais é bastante comum entre nós, como a guerra às drogas e guerra contra o câncer. Este olhar costuma nos levar a adotar soluções incoerentes com o verdadeiro processo diante dos nossos olhos. O vírus não quer nos destruir, não é um inimigo consciente e determinado a dominar o mundo: ele faz parte da natureza (que vem sendo vastamente degradada pelo processo econômico mundial) e se reproduz por mecanismos naturais onde e quando encontrar condições adequadas.

O fato de um vírus estar presente em nosso corpo não significa que estejamos doentes. A relação que nosso organismo consegue estabelecer com ele é que determinará o seu impacto sobre nossa saúde. Há inúmeros vírus, bactérias e fungos que fazem parte de nosso corpo, alguns deles indispensáveis para nossa vida normal. O equilíbrio desta convivência é influenciado pelas características do vírus e do nosso sistema imunitário, que depende do nosso estado de nutrição, da nossa idade e outros fatores, inclusive das vacinas que tomamos para podermos conviver com determinados micróbios mais recentes na nossa história.

Em outras palavras, o segredo da nossa sobrevivência não está na guerra, mas numa convivência pacífica e cuidadosa com as novas formas de vida viróticas, micóticas e bacterianas, estudando-as, compreendendo seus mecanismos de sobrevivência e como podemos manter a nossa saúde mesmo na sua presença.

Ainda não sabemos o suficiente sobre o novo coronavirus, mas cientistas de todo o mundo estão se esforçando para encontrar o nosso acordo de paz para encerrarmos a epidemia, uma vacina que produza em nós anticorpos suficientes ou um medicamento capaz de controlar o crescimento do vírus ou ambos. Sabemos também que o novo coronavirus continuará a se espalhar entre nós durante muito tempo, talvez em mutações subsequentes de gravidade variável, como os vírus influenza. Teremos que descobrir como conviver com ele pacificamente.

Enquanto isso, outros cientistas já demonstraram que o isolamento físico, o uso de máscaras, testagem ampla e medidas de higiene podem reduzir a transmissão e o número de mortes. No entanto, o general em exercício no ministério descartou estes conhecimentos científicos e resolveu seguir a lógica militar, que consiste em obedecer sem questionar, ainda que a ordem seja absurda. Assim, cumprindo a decisão do presidente da república, o comandante da saúde ordena que a pandemia deve responder ao uso amplo da cloroquina, apesar da falta de evidências científicas para isso.

Recursos financeiros, que poderiam ser usados em mais testes e equipamentos de proteção individual, por exemplo, estão sendo desviados para produzir, comprar e distribuir cloroquina, mas o número de mortes por COVID-19 continua a crescer. Apesar das baixas aos milhares, o general submisso continua fiel ao seu chefe, curiosamente o mesmo capitão que foi expulso do exército, o qual faz de tudo para manter o cargo que lhe caiu nas mãos incompetentes.

Imagino que nenhum militar verdadeiramente patriota suicidaria sua população para proteger o alto comando. Muito menos um médico deveria entregar sua dignidade profissional e sua coerência construída em torno da medicina baseada em evidências para defender a prática autoritária e ilegal da medicina exercida por Jair Bolsonaro.



Obrigado a algumas leituras amigas realizadas antes desta publicação.

Lor

Julho 2020







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