Perdendo a memória



Meu amigo perguntou se certos esquecimentos que ele vem sentindo seriam sinais de demência senil ou Alzheimer.

Pedi que me desse mais detalhes.

Venho me esquecendo de como eram os encontros na minha família, disse ele, cabisbaixo. Tenho uma vaga lembrança de que era um tempo em que não havia tantos rancores do fulano, ou não falo mais com o beltrano, ou não se toca nesse ou naquele assunto com o ciclano.

Não me lembro mais como era discordar das pessoas sem achar que suas ideias eram fruto do ódio ou da desinformação.

Esqueci-me do jeito que a gente falava sobre o futuro, pois parecia mesmo haver um futuro, meio incerto, mas tínhamos planos para ele e sentíamos que, mesmo com idas e vindas, a maioria das pessoas desejava tempos melhores e caminhávamos adiante.

Não me lembro da última vez que tive orgulho de ser brasileiro ao saber de alguma realização extraordinária de um companheiro de cidadania, alguma obra de gente dedicada ao seu povo.

Estou me esquecendo de como era a alegria de ver uma multidão nas ruas e pensar que eu compartilhava com aquelas pessoas um destino, uma terra e um sonho.

Está apagando da minha memória o sentimento de proximidade com qualquer estranho, o qual me fazia sentir parte da humanidade.

Não consigo recuperar a lembrança de como era andar por aí sem tentar adivinhar pela postura, gestos, roupas ou palavras, quais são as pessoas com as quais nada mais tenho em comum.

Já não me lembro de quando era capaz de olhar para alguém sem ficar com raiva da sua opção política ou do nível de barbaridade social que aquela pessoa aceita cinicamente.

Enfim, estou esquecendo a pessoa que eu era.

Ouvi meu amigo e o abracei.

Sim, você está doente, disse a ele.

Talvez seja algum tipo de demência contagiosa. Outro vírus novo, vai saber, que se espalhou pelos computadores e celulares, que contamina nosso coração, que dissemina desinteligência artificial e causa perda de memória. O pior é que parece ainda não haver cura para essa epidemia.

Se servir de consolo, meu amigo, também estou contaminado. Então, podemos nos aproximar e conversar.

Um abraço de corpo presente e a amizade talvez sejam antídotos para nossa moléstia atual, quem sabe?

LOR, fevereiro 2020

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