Receita para depressão



Meu amigo disse no celular que andava muito estressado quando perguntei por que me pedia uma receita de calmante. Estava preocupado com o futuro das duas filhas pequenas, não conseguia despregar o olho das notícias na internet e nos jornais e sentia-se ansioso em casa e isolado no trabalho, onde não havia mais espaço para conversas fora do assunto profissional.

No consultório, explicou-me que a crise climática virá inevitavelmente e de forma trágica para a civilização, resultando em guerras, fome, migrações forçadas e miséria humana. Ele sofre a cada árvore cortada na Amazônia, porque sente que é um passo em direção ao abismo e que o governo brasileiro está acelerando esta corrida suicida.

Uma de suas filhas é adotada e ele se revolta com a discriminação contra seu gênero e sua cor de pele. Imagina se as coisas continuam neste retrocesso! – ele se apavora - Parece que há uma revolta machista contra as conquistas femininas dos últimos anos! Tenho pesadelos com minhas filhas sofrendo abusos por parte de homens violentos... – lamenta em pânico. Concordo com ele que vivemos momentos ainda mais difíceis para as mulheres.

Ele me mostra um livro que está lendo e diz: As democracias estão sendo deformadas pelos populistas, que se aproveitam da desigualdade econômica crescente para tomarem o poder pelas eleições! Você sabia que no mundo todo não foram gerados novos empregos no último ano, apesar do crescimento da população? – pergunta com o olhar angustiado.

Mas sua principal queixa é a obsessão que se apoderou de sua mente: pensa em Bolsonaro o dia inteiro! Qualquer brecha na sua atenção é preenchida pela raiva que sente como resposta aos pronunciamentos diários agressivos e humilhantes feitos pelo presidente, que foi eleito na onda da crise econômica e das denúncias de corrupção dos políticos pelos empresários. - Juntaram os antipetistas com os racistas, os elitistas, os machistas, os autoritários e os ressentidos para elegerem um político ignorante que defende tortura, miliciano e pena de morte! Penso nesse cara mais do que penso nas minhas filhas, acredita? – quase grita comigo o meu amigo.

Nos últimos meses, durmo e acordo com raiva, não estou aguentando! – reclama abatido, os ombros caídos num retrato corporal de sua impotência. - Quero um calmante que me faça dormir e esquecer estas provocações diárias, uma desgraça por dia, para que eu possa parar de pensar nesse cara! - finaliza.

Pergunto se já tentou outras alternativas, pois um medicamento poderia esfriar um pouco as emoções, mas não mudaria a essência dos seus problemas: eles continuariam lá, à espreita, para dilacerar sua alma cotidianamente. Quem sabe, sugiro, ele poderia parar de ver notícias por uns tempos, sair das redes sociais, não conversar sobre política? Ele já tentara: saíra do Facebook e de grupos de WhatsApp e desistira dos noticiários de TV. Nos últimos tempos vinha buscando apenas leituras e informações sobre as quais tinha o controle do que desejava ver e ler. Mas, não adiantara: alguém sempre chegava para contar “a última do Bolsonaro” e ele se enraivecia novamente.

Outra forma de diminuir a ansiedade, - comentei, - seria reconhecer nossa pequenez diante do mundo, pois podemos fazer muito pouco individualmente para mudar as coisas. Talvez fortalecer seu senso comunitário, participar do sindicato ou de algum grupo com identidades comuns, fortalecer as entidades civis democráticas... Ele resmungou que perdera a esperança nessas mobilizações coletivas, pois haviam sido esvaziadas pela própria esquerda quando estava no poder e depois pela onda fascista.

Quem sabe, então, - insisti, - ele poderia se dedicar a algo que envolva mais confiança no futuro, como uma forma de superar o desânimo com o presente? Quase ia dizendo plantar uma árvore, mas percebi a ingenuidade da minha sugestão, ainda que fosse no sentido poético. Algo, por exemplo, que seja iniciado hoje para ser desfrutado quando suas filhas forem adultas... – completei.

Enquanto eu procurava mentalmente um exemplo adequado à idade e ao momento profissional do meu amigo, seus olhos brilharam: -  Levar minhas filhas para fora do Brasil? Ele havia recebido um convite para trabalhar na Inglaterra e ainda não decidira aceitar.

- Sabe de uma coisa? Mesmo com o retrocesso político do Brexit, lá ainda é melhor do que aqui.... Foi bom conversar com você: me ajudou a decidir.

E me deu um abraço.

Fiquei um tempo olhando para o receituário em branco sobre a mesa depois que nos despedimos.

Não posso receitar um calmante para uso próprio.




 

Comentários

  1. Compartilhando, caro companheiro e irmão, querido Dr. LOR. Abraço

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  2. Compartilhando, caro companheiro e irmão, querido Dr. LOR. Abraço fraterno

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