O recruta sociopata





Meu interrogatório no exército foi interrompido por alguns instantes para que dois capitães combinassem na minha frente algo pessoal entre eles, um aniversário de crianças, se não me falha a memória, para em seguida um deles retomar as perguntas aos berros. Fiquei perplexo por instantes ao constatar que aqueles dois indivíduos eram pessoas comuns, tinham família, filhos e uma vida social além das paredes sinistras daquele setor de inteligência militar nas dependências do 12º Regimento de Infantaria em Belo Horizonte.

Exatamente meio século depois, compreendo melhor que vivíamos naquele cubículo os efeitos da radicalização política extrema, que transforma os adversários em inimigos, desumanizando-os até que se tornem “eles”, os vermes, os traidores, os que não merecem viver. Humilhá-los, torturá-los e eliminá-los é como lidar com animais de alguma espécie peçonhenta. O destino mais terrível para “eles” não causa pena, culpa ou arrependimentos em “nós”. Pelo contrário, apresenta-se para nós de forma moralmente justificada: exterminar os maus é fazer o bem.

Para a transformação de pessoas comuns em torturadores de adversários há treinamentos especiais para acelerar o processo de desumanização do inimigo. Ouvi o relato de um conhecido que foi recruta de paraquedismo no Rio de Janeiro que, durante seu treinamento anti-guerrilha na década de 70, entregavam-lhe uma arma e ordenavam que atirasse sem hesitação no que encontrasse diante de si quando uma determinada porta se abrisse. A porta se abria e então surgia um indivíduo nu, algemado e encapuçado, provavelmente um prisioneiro político, segundo meu conhecido, na direção de quem os soldados tinham que disparar suas armas. Os recrutas não sabiam que eram balas de festim. Não consigo sequer imaginar o sofrimento repetido e imenso das pessoas que recebiam aquelas sucessivas simulações de fuzilamento e o trauma psicológico dos jovens soldados recrutados para aquela forma bárbara de treinamento.

Não me espanta, portanto, que Jair Bolsonaro, que serviu o exército de 1973 a 1988 e passou pelos paraquedistas naquela época, conserve antiquados conceitos anticomunistas e o desejo de extermínio diante dos adversários que ele transforma automática e visceralmente em criminosos ou traidores.

Há, porém, uma diferença crucial em Bolsonaro. A maioria das pessoas, passados os momentos de ódio cego e conflitos extremos e reconhecendo o sofrimento causado pelos confrontos radicais, é levada a retomar o bom senso e vai aos poucos compreendendo que somos todos seres humanos com diferentes visões de mundo. E procuramos encontrar formas de convivência que permitem o tempo cicatrizar as feridas para vivermos juntos.

Bolsonaro, ao contrário, parece profundamente preso ao passado e declarou em campanha presidencial que desejava levar o Brasil de volta para 50 anos atrás, ou seja à década de 70! Exatamente quando ele era um jovem militar, possivelmente em contato com os sistemas de inteligência do exército, os quais realizavam interrogatórios sob tortura, como foi amplamente demonstrado na Comissão da Verdade.

O que nos choca em Bolsonaro, no entanto, é perceber seu prazer, o gozo sádico que manifesta em sua diarreia verbal incontrolável quando se refere sorrindo sardonicamente às vítimas de tortura, por exemplo, como fez no seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff. Diante de milhões de brasileiros Bolsonaro cometeu o grave delito de apologia ao crime ao demonstrar sua admiração pelo torturador coronel Ustra, votando em seu nome e estabelecendo seu vínculo com a tortura ao chamá-lo de “o terror da Dilma”. Agora, Bolsonaro acaba de causar nova e profunda dor à família do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, que tinha dois anos de idade quando seu pai foi morto pelos militares, dizendo: “Se quiser saber como seu pai morreu, eu conto! ”.

A crueldade de Jair Bolsonaro se mantém e ultrapassa o período da ditadura militar, num sinal de ausência total de empatia, num nível que somente é encontrado em sociopatas. Diferentemente do Adélio Bispo, que o agrediu com uma facada e cuja esquizofrenia o impede de ter consciência dos seus atos, os sociopatas sabem exatamente o que estão fazendo.

Mas ambos são incuráveis.






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