Versos e reversos
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Subi por aqueles degraus, há quase meio século, sem saber que as pessoas na reunião para a qual havia sido chamado pretendiam que eu saísse dali como o candidato de consenso das organizações de esquerda para a presidência do Diretório Central dos Estudantes de Minas Gerais.
Há 50 anos, passei pelo porteiro, figura quase decorativa que recebia correspondências e dava informações, e segui para o terceiro andar sem dificuldades, pois não havia cancelas, câmeras ou vigilantes nas unidades da universidade naquela época. Depois de seguir os procedimentos para confirmar que não estava sendo seguido, entrei numa sala onde me esperavam seis pessoas, algumas de rosto familiar - de outras reuniões, passeatas, alguma manifestação relâmpago? Duas delas eram mulheres jovens, tipicamente vestidas como as estudantes em 1969, dois rapazes de barba e dois homens que aparentavam ser bem mais velhos, talvez uns trinta anos, e eram de movimentos operários, como eu viria a saber em breve.
Pelos campos há fome em grandes plantações.
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Acenaram-me rapidamente em sinal de boas-vindas e o homem mais velho indicou-me uma das carteiras com o braço lateral em prancheta e alertou em voz baixa que, como sempre, ninguém precisava dizer seu nome verdadeiro, nem qualquer outra informação pessoal e bastava que se mencionasse o grupo ao qual pertencíamos quando usássemos a palavra. A jovem de boina cinza se identificou como representando a gestão do Diretório Central dos Estudantes e fez uma breve análise da conjuntura, tendo em vista a necessidade de que esquerda mais radical mantivesse o controle do Diretório, mesmo com a prisão de vários dos dirigentes estudantis em todo o país e o aumento da repressão policial.
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão
Depois de analisar a grande dificuldade para encontrar novos estudantes dispostos a participarem do movimento de resistência à ditadura militar, a jovem encerrou dizendo que seu grupo estaria disposto a acatar uma solução de compromisso e considerava a indicação do grupo Corrente, do qual eu fazia parte, uma proposta aceitável naquelas condições. O rapaz de barbicha repartida em duas pontas agudas falou em seguida, dizendo que a redução dos quadros legais era evidente porque muita gente estava sendo obrigada a passar para a clandestinidade.
Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
A outra jovem acendeu um cigarro e identificou seu grupo como sendo a Ala Vermelha do PC do B e disse que apesar de concordarem com a formação de uma chapa de consenso, o programa político deveria respeitar as divergências entre os grupos, especialmente nas questões de fundo... protagonismo dos camponeses na revolução... a ditadura do proletariado... no contexto da guerrilha urbana. Eu não entendia bem o que ela dizia, em parte pelo tom de voz muito baixo, mas principalmente pela minha pouquíssima experiência política, pois eu era um rapaz de vinte anos e tomara contato com a política estudantil um pouco antes, ao entrar para a Faculdade de Medicina.
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão
O rapaz de óculos de aros de metal não se identificou e perguntou como eu pensava que seria o papel dos estudantes na luta revolucionária. Respondi que achava importante a militância estudantil, pois muitas lideranças revolucionarias vinham da classe média universitária, como os próprios Chê e Fidel, mas os estudantes, por causa de sua origem pequeno burguesa, deveriam apenas servir de apoio aos principais responsáveis pela revolução socialista, que são os trabalhadores. O grupo permaneceu em silêncio enquanto eu repetia um conjunto de crenças ainda imaturas e alimentadas com os jargões que ouvira de pessoas mais experientes.
Somos todos iguais braços dados ou não
Os amores na mente, as flores no chão
A certeza na frente, a história na mão
O homem negro falou em seguida que sua organização infiltrada entre os metalúrgicos de Contagem reconhecia a importância de se manter a atividade política estudantil como uma via de luta legal, mas que não havia em seu grupo pessoas disponíveis para esta tarefa e por isso acataria a indicação da Corrente e, em seguida, olhou para mim. Demorei um pouco para compreender que eles estavam dizendo que eu deveria ser o candidato à presidência do Diretório. Os demais assentiram com a cabeça. Fiquei confuso porque a pessoa que me designara para comparecer àquela reunião dissera apenas que eu deveria ouvir a proposta que eles fariam e depois retornar com ela para nossa organização.
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
As pessoas se entreolharam e a moça do cigarro disse: Já temos a posição da sua liderança, que nos disse que você seria um quadro capaz de dar conta desta tarefa. Além disso é uma das últimas pessoas na legalidade, um dos poucos militantes que ainda podem mostrar a cara. Um calafrio percorreu meu corpo. Os últimos dirigentes estudantis estavam na clandestinidade, ou presos, ou mortos ou banidos do país, um deles inclusive sequestrara um avião para conseguir sair do Brasil. Mas eu ainda tinha dificuldades para compreender o significado real das siglas e ideias que fragmentavam a esquerda em diversas tendências naquela época.
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
Assustado, pensei que se eu era a última esperança, então não havia esperança, mas disse que não havia sido consultado sobre aquela possibilidade, que me achava pouco experiente para uma responsabilidade daquelas e que eu não podia aceitar a tarefa, e que eu voltaria a conversar com as pessoas do meu grupo. Houve muito desconforto nas falas seguintes, alguns tentando me convencer, outros tentando me fazer ver que essa atitude individualista pequeno-burguesa era contrarrevolucionária. Depois de frases cada vez mais amargas, despedi-me e caminhei em direção à porta, mas antes de sair ouvi do metalúrgico: Um dia você será julgado por isso, companheiro, e terá que prestar contas à história.
Um mês depois, fui preso pelos militares junto com quase todos os militantes de nossa organização e nos anos seguintes viveríamos outra história e outro tipo de julgamento, o maior julgamento militar da história do Brasil, realizado em Juiz de Fora, no qual fui absolvido por falta de provas.
Décadas depois eu voltaria àquele mesmo prédio da Escola de Engenharia, para outra reunião, para qual eu também estava desinformado sobre os seus propósitos, na qual alguns grupos de esquerda dentro da universidade queriam que eu fosse o candidato a vice-reitor nas eleições de 2001. Dessa segunda vez, aceitei a missão, mas perdemos a eleição e com ela a ingenuidade que me restara dos anos de juventude, ao conhecer a política universitária mais de perto.
O velho edifício, agora fechado, com centenas de salas vazias, janelas cerradas, sua construção em concreto, pesada e triste, lembra um mausoléu...As famílias sem teto acampadas na sua porta representam um réquiem doloroso para nosso sonho de acabar com a pobreza.
Toca o meu celular: alguém me convidando para participar de uma reunião em defesa da democracia. Noutro prédio.
Os versos de Vandré terminam e o trânsito volta a fluir.
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