O muro dialético

Horas depois de embarcar no ônibus e deixar para trás as serras do Sul de Minas, Gorgosinho estava de pé diante da jovem que o entrevistaria para o possível emprego de capataz numa fazenda. Esfregou a mão úmida nas calças, mas a moça não estendeu a sua, indicando que ele se sentasse, enquanto ela perpassava os olhos nos papéis contidos numa pasta e então perguntou: Fale-me um pouco sobre suas pretensões.

Gorgosinho fora orientado pelo primo que morava em Belo Horizonte a tomar muito cuidado com as palavras, porque para conseguir aquele emprego ele precisaria mostrar conhecimento sobre as tarefas a serem executadas na fazenda, mas tudo dependeria da maneira como ele diria as coisas, devendo evitar gírias ou palavras vulgares e controlar ao máximo seu sotaque caipira. 
Chegaram a ensaiar o modo como Gorgosinho deveria se expressar, evitando palavras como uai, ópcevê, prestenção, pódexá, seicumé, vortemeia, xápralá e outras tantas que brotavam espontaneamente da prosa alegre e solta daquele homem que vivera entre bois, capim e cavalos durante décadas, até que a pequena fazenda onde trabalhava fosse à falência na ultima crise econômica.

A voz da entrevistadora insistiu: Fale-me um pouco sobre suas pretensões.

- Bão, hã, quer dizê... num acho que é pretensão, não senhora...senhorita... acho que dô conta do serviço.

- Como?

- Num tô mi gabano, não, mais sei fazê o que precisá.

- Quero saber quais são suas expectativas, caso seja contratado.

- Uai, cêquisabe quanto de tempo vô tê que esperá.

- Não entendi. O que o senhor vai esperar?

- A sua resposta, uai, de quando vô começá a trabaiá.

- Ah, se o senhor for selecionado nesta entrevista, é para começar imediatamente.

- Daqui prá lá, direto? Sem trocá de rôpa nem nada? Uai, sifô u caso...

- O senhor é bem confuso... O senhor sabe usar a internet?

- Já ovi fala, mas num usei inda não. Na roça, tem pôca serventia, acho, essas coisas de muita lâmpida, motor e pressa, funciona não. No campo tudo tem tempo certo, prá pantá, prá coiê, e se coisá o trem, zanga.

- O senhor conhece o trabalho que o espera na fazenda?

- Bão, meu primo Gerardo é qui assuntou prá mim o trabaio cocês, mas conhecê memo, assim de perto, conheço não.

- Então o senhor não tem experiência com criação de cavalos de raça?

- Quê issu? A coisa que mais fiz na vida é cuidá de cavalo, dona! I di tudo qui é raça!

- Mas o senhor disse que não conhecia...

- Ah! Disse que num cunhecia o seu cavalo, sua égua...

A face de espanto da entrevistadora não foi percebida pelo Gorgosinho e ele manteve um sorriso esperançoso de que o mal-entendido sobre sua competência como homem do campo houvesse sido dissipado, mas a moça fechou subitamente a pasta com os papeis e disse: Vou ser obrigada a encerrar esta entrevista por causa de sua grosseria.

- Grosseria? Num entendi, dona.

- O senhor me chamou de... égua!

- Quequiéisso, meu deus! Eu disse que não conhecia os cavalo e as égua da sua fazenda, otras égua eu conheço, iguar a senhora... deve conhecê, num sei, às veiz, pode sê.

- Sinto muito, mas o senhor não é o tipo de empregado que estamos precisando.

- Mas a senhora nem mi viu fazê nada, nem tratá dum animar, nem curá uma bichêra ou campeá um cavalo nu pasto, enfiá a mão na barriga da égua prá tirar o potrinho...

- O senhor pode se retirar, por favor?

- Ah, dona, num faz isso... tenho muié e duas fias, tô sem emprego!

- Vou chamar a segurança!

Um vigilante se aproximou e fez menção de segurar Gorgosinho pelos braços, mas ele se esquivou e caminhou em silêncio até a rua. De volta à casa do primo, Gorgosinho deixou o corpo cair no banquinho da cozinha.

- Gerardo, bem qui cê avisô qui aqueis rico fio das unha fala otra língua.

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