A permanência das coisas

Entrei no apartamento que estivera fechado desde que ela foi embora. Uma camada fina de poeira cobria todas as coisas que se encontravam na mesma posição em que estavam na noite em que discutimos pela última vez. O único ruído vinha da cozinha, onde a torneira da pia continuava a vazar em gotas regulares, agora de água enferrujada, que deixava um halo avermelhado ao redor do ralo em camadas sucessivas de evaporação. No quarto de casal, permanecia no chão entreaberta a mala velha, que na última hora ela desistira de usar porque o fecho estava com defeito. Sobre a bancada do banheiro havia um tubo de dentifrício retorcido pelo esmagamento impaciente que ela costumava fazer para espremer a pasta sobre a escova. Duas toalhas que usáramos na noite anterior, a minha branca e a dela violeta, pareciam ressecadas nos cabides de metal ao lado do box do chuveiro. No escritório improvisado, alguns livros que ela decidira não levar, equilibravam-se em duas pilhas sobre a mesa onde ela costumava escrever e estudar. No quarto do futuro bebê, o berço solitário estava encostado na parede, onde ela começara a colar adesivos com passarinhos e flores e o armário de portas abertas continha apenas um tubo de cola, um martelo e uma fita métrica. Corri a porta de vidro da varanda e a sala foi invadida pelo barulho dos carros que transitavam na rua abaixo, onde a vi desaparecer dentro de um taxi, para sempre.

Fechei a varanda e saí do apartamento sem tocar em nada, com medo de que se eu movesse qualquer coisa de lugar desmoronaria a mágica que mantinha os objetos imóveis e assim desapareceriam os últimos indícios de que um dia existimos.

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