A Luta da Utopia contra a Realidade às Portas do Inferno











Cordel para Akira Kurosawa



Peço licença para contar, meu povo da Jesuânia,

História fabulosa que se sucedeu nos altos do Tijuco Preto,

Desconhecida até mesmo pelos velhos da minha infância,

Memória para ser celebrada em cantiga de roda e soneto.



Muito antes da televisão e dos computadores,

Viver é desde sempre luta renhida entre forças poderosas:

De um lado a deusa Esperança e seus valores,

Do outro a Morte e suas mazelas horrorosas.



Mas então depois da Segunda Grande Guerra terminada

Deu-se que uma das filhas da Esperança, a Utopia,

Se viu pelo exército da Realidade acuada

À beira de um penhasco fatal, em grande agonia.



Utopia resistia abraçada a seu irmão cego, o Amor,

Enquanto a Realidade galgava célere as escarpas,

E sobre os irmãos lançou seus cães do horror:

A Fome, o Genocídio, o Racismo e a cadela Fábrica de Armas.



Desista! - Gritou entre gargalhadas a pétrea Realidade,

Não sabes que sua amiga, a Juventude, não mais existe

Desgastada pelo tempo no desfiladeiro da idade,

E seus Sonhos se tornaram apenas melancolia e artrite?



Não vês que tenho ao meu lado a Natureza Humana,

Em seus mil disfarces onívoros e predadores,

A volúpia do Desejo, a Inveja soberana,

O Ódio fácil e a Sanha dos estupradores?



Se estas forças naturais lhe parecem insuficientes,

Lanço sobre vós a Tecnologia que assoberba meu poder,

Da manipulação genética, nanoética e microscopicamente,

À Hecatombe Nuclear, prenúncio da extinção por acontecer.



A Realidade levantou suas bandeiras ensanguentadas,

A Certeza, o Dinheiro e o Fim da História,

E mostrou à Utopia e seu irmão as caveiras descarnadas

Do Progresso, do Iluminismo e da Democracia ilusória.




E começou o ataque final, no qual a Realidade pretendia

Reduzir a humanidade à pura economia acachapante:

Tudo seria cartões magnéticos, celulares e monotonia,

Solidão, números, velhice e um enterro insignificante.



Mas, eis que, pela graça das Leis Aleatórias das Antilhas,

Chegam em ajuda da dupla ameaçada pela Realidade

Suas mais poderosas rivais, a Dúvida e suas filhas,

A Humildade, a Ciência, a Delicadeza e a Curiosidade.



Contei-vos, disse a Dúvida, que o amanhã ainda não chegou,

Não o sabemos com certeza, nenhum final está escrito,

Os ovos ainda não piaram, nenhuma gota se respingou,

A eternidade é uma ameaça tão abstrata como o infinito.



Dito isso, as forças antagônicas cessaram os palavreados

E entraram em combate feroz, resistindo cada qual

À queda no precipício, a Porta do Inferno dos atormentados

Pelo desespero, na falta de sentido da vida como tal.

O resultado da terrível batalha parecia inevitável,

Mesmo com perdas enormes de ambos os lados,

Pois a Utopia e o Amor sofreriam a derrota provável,

Não fossem alguns acontecimentos inesperados.



Vindas das profundezas paleolíticas de uma caverna,

Surgiram em cena a Poesia e a Música celeremente,

Enlaçando os combatentes com sutis fios de arte eterna,

Impedindo que se exterminassem os rivais definitivamente.



Súbito, vendo que Utopia das bordas se desgarra,

A Música alcançou-a em queda para sob o solo a ocultar,

Transformando-a magicamente num ovo de cigarra,

Para voltar à superfície dezessete anos depois, a cantar.



Esta batalha olímpica continuaria estremecendo o mundo,

E o povo de Jesuânia jamais voltaria a dormir sossegado,

Se as orações de Dona Maria Faria e Seu Raimundo

Não tivessem sido atendidas pela sua Fé no Sagrado.



Ouvindo tamanhas preces, surgiu o famoso Padre Candinho,

Que aspergiu água benta sobre o rebanho de fieis,

Fazendo desaparecer da sua consciência rapidinho

Aquelas cenas de guerra e evitando traumas incuráveis.



Vários dezessete anos já se passaram,

E em Tijuco Preto ninguém se lembra do ocorrido,

Da guerra interminável que a Utopia e a Realidade travaram,

Exceto um poeta que procura cigarras, por ali, distraído.



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