O último ascensorista

Quando André tentou impedir os passos resolutos do homem que queria furar a fila do elevador para ocupar o derradeiro lugar, que seria por direito da senhora de meia idade prestes a entrar, ele não poderia imaginar as consequências deste gesto corriqueiro em seu último dia de trabalho como ascensorista num prédio no centro comercial de Belo Horizonte, que inauguraria no dia seguinte os novos elevadores automáticos e inteligentes.

A fila, senhor! – Disse André com firme cordialidade. Estou com pressa! – Continuou avançando o homem até quase tocar a mão de André, que permanecia estendida interrompendo a trajetória do outro que parecia ignorar a mulher ao lado. Sinto muito, senhor! – Insistiu André num tom mais alto. Tenho uma reunião importante, dá licença! - O homem elevou a voz com raiva e autoridade. Não posso permitir que furem a fila, senhor! – André levantou-se de seu pequeno banco no elevador, obstruindo a passagem do homem. Saia da minha frente, estou com pressa, já disse! André estendeu um dos braços apoiando a mão na porta do elevador. Vou ter que chamar o segurança, senhor! – Disse André enquanto sinalizava para o segurança que já estava atento àquela movimentação incomum. O homem enfureceu: Seu preto estúpido, que língua você entende? Ele começou a empurrar o ascensorista quando o segurança se interpôs entre os dois e alguém na fila gritou: Racista!

Até aquele momento, André já sobrevivera a muitos acontecimentos. Escapara da epidemia de sarampo que assolou o norte de Minas e que levou embora dois de seus cinco irmãos e saíra com ferimentos leves do acidente com o ônibus, no qual viajava para participar do congresso estudantil em São Paulo, aonde ele representaria o diretório acadêmico da Engenharia da Federal, a faculdade que ele cursava sustentado pelas economias do pai que trabalhava sem descanso como atendente numa farmácia de Nanuque. Na universidade aprendera sobre as causas das injustiças sociais e a parte que lhe cabia como pobre naqueles latifúndios, descobrira que vivíamos numa ditadura militar e aos poucos tornara-se socialista, uma grande mudança na sua visão de mundo, antes cristã e obediente. Sua indignação crescente o levaria para a militância política e sua quase inevitável clandestinidade em pouco tempo, depois de aderir a um dos grupos de jovens trespassados para a luta armada diante da repressão violenta que havia contra todas as ideias que se opunham aos generais.

Antes que pudesse participar efetivamente da ação guerrilheira de assalto a uma agência bancária fora capturado com um tiro na perna na tentativa de fuga desordenada pelo aparecimento de uma patrulha policial inesperada. Ferido, foi mantido por doze dias num freezer industrial, sem roupa, sem alimentação e sem poder dormir por causa dos jatos de água fria que eram lançados sobre ele periodicamente, sendo retirado dali inúmeras vezes para as sessões de tortura conduzidas pelos agentes militares. Numa delas, depois de vários choques elétricos e pancadas na cabeça entrou em convulsão e foi levado para o pronto socorro com nome falso como se fora um bandido atropelado durante a fuga.

De volta à prisão, com o passar dos meses as torturas ficaram menos frequentes até que toda a sua organização revolucionária fosse presa ou assassinada e os sobreviventes aguardaram o julgamento confinados no presídio estadual. André recuperou alguns quilos, mas as convulsões persistiram e em cada crise sua habilidade mental parecia se reduzir um pouco mais, transformando em névoas as matérias que estudara na Escola de Engenharia, esquecendo-se dos nomes dos colegas de turma, enquanto sua mão direita continuava a tremer, obrigando-o a reaprender a escrever com a esquerda, durante os intermináveis cinco anos da sentença imposta pelo tribunal militar.

Em liberdade, o apoio da família permitiu-lhe trabalhar na marcenaria de um primo em Nanuque, depois numa metalúrgica e em outras fábricas na área industrial ao redor de Belo Horizonte, mas sua saúde precária e o envolvimento político com os sindicatos o indispunham com os patrões, que se livravam dele assim que podiam. Depois que foi colocado numa lista de trabalhadores indesejáveis, que circulava entre os diretores de empresas, restou-lhe a solidariedade dos companheiros do sindicato que o empregaram como encarregado de serviços gerais, garantindo-lhe recursos para casar, já quarentão, com Ivana, com quem teve seu filho Carlos Alberto, nome em homenagem a um amigo de presídio, o Fanta.

Dedicou-se ao sindicato até a eleição do primeiro trabalhador para a presidência da república, como ele repetia entre os amigos, evitando falar o nome do eleito porque achava que não era a pessoa que importava, mas sim a classe à qual ele pertencia, um metalúrgico como ele. Nos anos seguintes retornara para casa cada vez mais tristemente impressionado com o esvaziamento do sindicato, com a divergência política entre aqueles que aderiam ao governo, à espera das soluções que viriam de Brasília, e a minoria que achava que a mobilização por melhores condições de vida deveria continuar incluindo greves e outras ações independentes do palácio federal. Sentindo-se cada vez mais isolado, André completou o tempo para a aposentadoria e se afastou do sindicato, mas precisou arranjar um bico para completar a renda familiar, já que ainda estavam pagando o financiamento do Carlos Alberto numa faculdade privada. Aí, conseguiu o trabalho provisório de ascensorista naquele prédio em reformas.

- Chama a polícia pro racista! – Gritou alguém no saguão, enquanto o homem se desvencilhava do segurança: Não encosta em mim! O homem girou seu corpo em direção à portaria e disparou correndo para a rua, enquanto vários celulares registravam seus movimentos. Estas imagens gravadas, levadas à delegacia para o registro da queixa de crime de racismo, permitiriam o reconhecimento daquele sujeito que queria furar a fila, um doleiro que trazia a pasta com propina para um advogado naquele edifício que a entregaria a um deputado encarregado de facilitar a instalação de uma empresa de mineração numa área de preservação ambiental. Mas ninguém naquela hora teve essa iniciativa porque aquele que poderia prestar a queixa de racismo estava caído com a metade do corpo para fora do elevador e se contorcia convulsivamente, inconsciente.

A propina foi entregue por outro emissário no dia seguinte, que subiu pelo elevador automático e inteligente.

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