Parking

Saí de casa e fechei o portão pretendendo deixar do lado de dentro a presença sólida de paredes e objetos marcados por sentidos anteriores para vida, que a cada manhã e sempre um pouco mais me parecem desbotados e frágeis, como a ilusão herdada sobre o homem capaz de plantar uma árvore, construir uma cadeira ou escrever um livro melhor do que seu vizinho que poderá morar numa casa no meio da floresta que o mundo abrirá caminho em direção à sua porta, seria este mundo que hoje pulveriza cada um de nós em pó digital e dilui nossa identidade em senhas e logins múltiplos numa nuvem impermanente?, caminhei em direção contrária conferindo nos bolsos que deixara de propósito o celular em cima da escrivaninha do começo do século vinte onde meu avô contabilizava suas vendas no comércio de produtos que já atravessavam o mundo globalizado dos anos 30, como a casimira inglesa fabricada na mesma Liverpool que ouviria John Lennon dizer Imagine, e os três rapazes negros desceram do aglomerado de casas atrás do aeroporto cantarolando um funk, skates debaixo do braço, bonés para trás, uma coisa qualquer que incomodou o grupo de guardas municipais: - Você aí, diga seu nome, mas seu nome verdadeiro! A ordem acusatória de falsidade ideológica presumida para o rapaz que ia à frente me ameaçou como aos garotos, minto às vezes, especialmente no nome, estopei com eles sem saber o que fazer, não tenho prática em ser revistado, sou branco, homem, velho e médico, tenho sido discriminado pelas polícias com bons dias e boas tardes, então não entendi nada do que os blitz falaram, os rapazes ligados nesse tipo de trampo murmuraram coisas inaudíveis e os armados os deixaram seguir, eles se mexeram embora eu continuasse paralisado vendo guardas e meninos negros se distanciarem, permanecendo aprisionado no tempo do próprio medo, palpitando nas têmporas as indecisões sobre o que faria se algo tivesse tomado um rumo diferente, falaria com os guardas, calaria minha boca, justamente na entrada daquele parque onde décadas atrás desafiamos a ditadura militar na esperança de construir um novo mundo em poucos anos, prazo que passou para décadas, depois foi prorrogado indefinidamente e atualmente vem sendo questionado pela justiça, aquela que se tornou a nova vestal da moral e cívica, condenando o futuro à imobilidade e aplicando penas de ódio perpétuo aos atores de uma peça inacabada onde toda a plateia morre no final, e despertei do devaneio e espanto da parada dos guardas e finalmente entrei no parque, onde um bando de escoteiros perfilava com os braços para diante nazi-saudando uma bandeira e uns estandartes em meio aos cocôs dos cachorros que passeiam com seus donos apesar das placas de aviso e recebem mais atenção do que as crianças, dezenas de alunos de uma escola que andavam em fila sob as ordens ásperas dos professores para manter a ordem e a disciplina, matérias obrigatórias no ensino fundamental do primeiro ao milésimo grau, ao contrário de sociologia e música, duas inutilidades dispensadas para os indígenas até porque ali ao lado da biblioteca quase vazia os últimos músicos de uma banda de velhos desafinavam seus instrumentos na tentativa de imitar a marcha militar composta em Viena, enquanto o motor de uma máquina de moer cana tuctuctucava ao lado da venda de pasteis gordurosos, ocultando o canto desterrado de um sabiá que insistia em achar que havia alguma primavera a comemorar, e foi então que o grupo de percussão do professor africano restaurou os ritmos do meu coração, que foi se empolgando e voltou a bater com vontade de viver, contagiando minhas pernas e pensamentos até que o maestro com força e sotaques interrompeu o ensaio e fez um sermão para uma das percussionistas, sobre manter a postura corporal e a capacidade de se esforçar para alcançar a perfeição, e apontou para o céu, como se suas palavras tivessem uma origem divina, que a música é disciplina, é sacrifício, é sofrimento e eu pensava que fosse arte. Retomei minha bengala de volta para casa, uns anos mais velho.

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