O julgamento da história



















No dia em que Getúlio se matou, meu pai colocou sobre a mesa de escritório seu revólver calibre 32 com cabo de madrepérola, idêntico àquele com o qual o presidente atirara contra o próprio peito, e permaneceu pensativo diante da arma enquanto eu me esgueirava para subir em seu colo. 

Meus cinco anos não eram suficientes para compreender bem o que se passava, mas lembro (ou inventei e acredito nesta versão) que ele repetiu para si a frase famosa contida na carta do presidente suicida em que prometia sair da vida para entrar para a história, aparentemente uma instância na qual ele seria considerado inocente pelos vários crimes que seus opositores lhe atribuíam, entre eles meu pai, apesar de fumarem o mesmo tipo de charuto, aliás a mesma marca cubana que fumava toda a elite que se opunha ao caudilho gaúcho. 

Naquela época ainda se falava dos tribunais que julgaram os crimes cometidos pelos alemães e seus aliados na grande guerra que terminara uma década antes, e algumas condenações à forca de alguns poucos criminosos nazistas devem ter me convencido de que a história seria capaz de reparar implacavelmente os erros da humanidade. 

Aos poucos fui desconfiando que naquele tribunal histórico os vencedores foram os juízes, as injustiças não receberam uma punição à altura dos danos que foram causados e os milhões de mortos na guerra não retornaram à vida nem suas famílias receberam qualquer tipo de reparação. 

Depois aprendi com Darcy Ribeiro que mais de oito milhões de negros haviam sido moídos nos engenhos de cana durante a escravidão brasileira e a abolição não oferecera uma vaquinha ou dois palmos de terra para que os sobreviventes pudessem começar uma vida nova sem ter que formar favelas repletas de mão de obra de reserva para o capitalismo pujante em sua nova fase. 

Ainda que nenhuma vida negra pudesse ser restituída, nem um simples pedido de desculpa fora jamais emitido pelos senhores e seus poderes, ao contrário, os descendentes dos escravos são, desde então, acusados de merecerem uma vida miserável por serem preguiçosos, estúpidos e incompetentes, como toda a ciência do racismo e da eugenia claramente tem demonstrado. 

A coleção de evidências contra a habilidade jurídica da história vai se acumulando à medida que aponto meu dedo para qualquer região no globo terrestre girando à minha frente: apenas neste século vinte, os elegantes belgas e seu massacre de dez milhões de negros no Congo, os franceses gourmets e suas torturas da Argélia, os norte-americanos e suas bombas em Hiroshima e Nagasaki, os chineses e os milhões de mortos de fome por ordens de Mao, os ingleses eruditos e a criação do apartheid assassino na África do Sul, o genocídio por omissão internacional em Ruanda, a guerra étnica nos Bálcãs, os expurgos e os milhões de mortos na Sibéria de Stalin, o milhão de mortos no Camboja... 

Interrompo o giro do globo com meu indicador parado sobre as Américas: cerca de dezenove milhões de indígenas mortos nos primeiros cem anos de invasão dos europeus. Eles viviam aqui, por exemplo, os extintos Caetés, exatamente onde hoje construí minha casa, meus muros, a tal da minha propriedade. Estarei disposto ou algum tribunal histórico me obrigaria a devolver estas terras a seus legítimos donos ou a eventuais descendentes ameríndios como forma de reparação pelo genocídio a que foram submetidos e do qual me beneficio? 

Pois é. 

Temo que a justiça da história seja lerda e míope e ainda quando condena é incapaz de punir ou realizar qualquer ação retroativa além da retórica. Por isso, se uma pessoa hoje está se sentindo injustiçada é melhor procurar outro tipo de compensação para seus males, porque, como concluiu Yuval Harari, justamente um professor de história em Jerusalém: não há justiça na história.


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