Os nazistas cercaram Jesuânia

Eles chegariam pelo lado do velho açougue, perto da ponte sobre o rio Lambari, eu tinha certeza, desde meus cinco anos quando vi meus primeiros filmes sobre a guerra que havia acabado de acontecer em todo o mundo. 

Num dia qualquer eles viriam por detrás dos montes do outro lado do rio e veríamos inicialmente a ponta dos canhões rasgando o céu e em seguida as sapatas e engrenagens poderosas por debaixo dos tanques de uma divisão Panzer, que avançaria em nossa direção esmagando qualquer coisa em seu caminho, e em seguida seríamos todos presos num campo de concentração. 


Mesmo tendo sido derrotados pelos americanos, aparentemente sozinhos nesta missão heroica nos filmes que eu assistira, eles me pareciam tão malvados que se sobrasse apenas um deles – fugindo para o Brasil e morando num sítio qualquer perto de São Paulo, por exemplo, - seria o bastante para arregimentar milhões novamente à caça de judeus e outras pessoas, - mesmo aquelas que no catecismo me ensinaram que não haviam traído Jesus, o deus que dava nome à pequena cidade onde eu nascera, - o que eu não entendia bem, mas que me trazia grandes medos noturnos, pois de alguma forma me adivinhava uma vítima em potencial. 


Sua determinação de preferir a morte a serem derrotados, pátria ou morte ou raça ou morte, não sei bem a diferença, produzia um terror em meus nervos que se esfrangalhavam em pesadelos que eu não revelava a ninguém temendo que me dissessem que era tudo verdade. 


Mudei-me para outras cidades e fui aprendendo algumas coisas sobre eles, que talvez não fosse uma questão de maldade, mas parte inseparável de uma máquina universal criada pelos homens para explorar outros homens, que talvez circunstâncias históricas especiais haviam engendrado condições humanas especiais que jamais se repetiriam, a não ser como farsa, que talvez a democracia e os povos livres teriam vindo para ficar com seu estado do bem-estar social, para sempre. 


Talvez e talvezes que me acalmavam durante o dia, mas pareciam frágeis durante a noite, porque fui envelhecendo incapaz de sustentar os olhos sobre filmes, documentários ou imagens sobre a guerras, onde houvesse uniformes cinza e suásticas, porque ainda sou arrastado por um medo avassalador, que me leva a fugir para urinar mil vezes numa espécie de horror humilhante e patético, que se arrasta pela noite insone em que rememoro repetida e incoercivelmente as cenas de racismos, de preconceitos, de violências, de torturas, de fuzilamentos e de genocídios, entremeadas por belíssimos concertos sinfônicos com obras de Wagner, Beethoven e Strauss assistidas por oficiais da Gestapo. 


Depois de muitos anos longe de Jesuânia, compreendi um pouco melhor a quem eles perseguiam, além dos judeus, e encontrei os doentes genéticos e mentais, homossexuais, comunistas, ciganos, negros, asiáticos, latinos, pobres, deficientes, mulheres, velhos, deficientes e todos os demais que fossem diferentes de uma certa raça superior, cujas características estariam sobejamente comprovadas pela ciência que garantia a eles, os homens brancos arianos, o futuro da evolução da humanidade. 


Pensei que suas ideias também haviam sido derrotadas na invasão da Normandia, mas parece que ideias não morrem enquanto puderem se alimentar de novas sinapses e como não há vacina para pensamentos, somos todos vulneráveis. 
Nos últimos tempos tenho ouvido ruídos do outro lado do rio perto do velho açougue, talvez motores em funcionamento, vozes ásperas e incompreensíveis se elevando em tons de comando, ruídos metálicos de armas engatilhadas. 


Apavoro-me porque percebo que eles já estão dentro de nossas fronteiras. 

Eles são alguns de nós. 






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