Podemos voltar a conversar?
Aprendi no livro “Open
Socrates” da brilhante filósofa Agnes Callard, que um verdadeiro diálogo em
busca da verdade nas questões fundamentais só é possível por meio da conversa
racional com outra pessoa, pois ninguém consegue ver os defeitos dos seus
próprios argumentos.
Este diálogo socrático precisa ser sincero, ou seja, a
pessoa deve apresentar sua opinião e tentar convencer a interlocutora, mas, ao
mesmo tempo, deve estar disposta a ouvir e ser convencida pelos argumentos
contrários e, portanto, estar disposta a mudar de ideia.
De imediato, pensando “neles”, percebemos que é praticamente
impossível este tipo de diálogo porque acreditamos: “eles” jamais se convencem de
que estão errados! No entanto, e do meu lado, estou disposto a ser convencido por
argumentos e ideias “deles”?
Mesmo quando se trata de diálogos sobre fatos medidos e
observados, como nas discussões científicas, nas quais as regras exigem objetividade,
já é difícil uma equipe de cientistas aceitar a interpretação dos fatos - com narrativa contrária - de
outro grupo que estuda o mesmo assunto. Há inclusive um aforisma: as ideias
progridem de funeral em funeral, ou seja, é necessário que morram os velhos
acadêmicos para que os jovens doutores levem adiante suas novas visões de mundo.
Muito mais improvável, então, parece ser a “mudança de ideia” quando se trata de
discutir valores fundamentais que constituem a identidade que foi construída em
nós desde a infância e juventude, aqueles valores mencionados na conversa
da avó e sua neta que postei recentemente, ou seja, ordem, hierarquia, lealdade,
as tradições, a moral, a igualdade, a justiça social e a liberdade política e
de costumes etc. (ver
aqui mais detalhes sobre estes valores). Provavelmente cada pessoa possui
um conjunto inegociável de valores e então dialogar esperando que alguém mude
seus próprios valores parece ser perda de tempo.
Portanto, a possibilidade de diálogo socrático (sincero) entre
duas pessoas talvez somente seja possível sobre fatos objetivos e se houver respeito mútuo
pelo espectro de valores da pessoa interlocutora, se estes forem considerados
igualmente legítimos por ambas as partes. Apenas nesse contexto podemos discutir
as questões objetivas e essenciais do bem comum, ou seja, realizarmos a política.
Por exemplo, voltando ao problema proposto pela avó à sua
neta, da distribuição de verbas para contratar mais professores ou mais policiais
numa cidade com aumento da criminalidade. Os diferentes lados da discussão, por
exemplo, de um lado pessoas mais conservadoras e do outro pessoas
menos conservadoras, se sinceros, ou seja, se não houver outros interesses por
trás de cada opinião, ambos os lados desejam a redução da criminalidade. Se o diálogo for franco, não se pode nele questionar a idoneidade moral de quem acredita que mais
policiais ou mais professores seria a melhor solução. Somente assim a análise
racional dos dados disponíveis para a solução do problema da criminalidade pode
ser examinada por ambos os lados de forma democrática.
Ao contrário, quando houver dúvida sobre a boa intenção
do interlocutor, qualquer argumento, por mais racional que ele seja, será
contaminado pela ideia de que há outros interesses por trás da proposta.
Talvez esteja nessa dúvida moral a raiz da polarização atual
sobre “eles”, ou seja, a formação de bolhas ideológicas com um abismo político
entre as pessoas, ampliado pelas redes sociais que lucram com as postagens de
ódio e radicalização.
Para haver democracia, construirmos o bem comum, precisamos
acabar com a polarização e apostar no diálogo, mesmo que as mágoas anteriores sejam
legítimas.
A alternativa à democracia é a força: econômica ou militar.
Será possível discutir francamente e respeitar os
valores de ambos os lados? Sobre qualquer tema? Minha opinião é ingênua?
Voltarei a essas questões em breve.
Lor

Bom dia, Lor!
ResponderExcluirO diálogo socrático sincero é um desafio, especialmente quando se trata de valores fundamentais. É justamente esse tipo de interação que pode nos levar a uma compreensão mais profunda e a soluções mais eficazes para os problemas que enfrentamos.
Concordo que, além do respeito mútuo e sinceridade, mesmo quando há discordâncias, é a lucidez socrática que forma o tripé de tais acordos.
É necessário um esforço consciente para ouvir e entender os argumentos contrários e estar disposto a mudar de ideia - aí está a grande muralha.
Sua pergunta é pertinente: será possível discutir francamente e respeitar os valores de ambos os lados? Acredito, mas é necessário honestidade intelectual para a abertura. É possível que essa seja uma opinião ingênua, mas é uma ingenuidade necessária para construir democracia com justiça. Ou alguém teria uma sugestão melhor do que tirar a mão do coldre, se ater aos fatos objetivos e encontrar soluções concretas?
Abração Sérgio Campos