O vizinho invisível
Há vários anos, duas vezes por dia, sou obrigado a ouvir um
vizinho acelerando o motor de seu carro, provavelmente um chevrolet opala de 6
cilindros, sonho da rapaziada nos tempos da ditadura militar brasileira. Às
9:45 e às 17:45 ouço o ronco contínuo e grave do escapamento aberto, com
aceleradas intermitentes, durante exatos 15 minutos. Imagino que seja um carro
que permanece na garagem como relíquia saudosista da juventude de seu dono e
que precisa funcionar de vez em quando para recarregar a bateria e
desenferrujar as engrenagens. Daqueles que são exibidos ocasionalmente em
encontros de colecionadores nostálgicos, que dão mais valor às suas
preciosidades mecânicas do que aos seus próprios corpos, como o homem enfurecido
que ameaçou de morte meu neto no estacionamento de uma padaria porque o menino
passou a mão no seu retrovisor lateral.
Não conheço esse meu vizinho pessoalmente. Mudou-se para cá,
uns anos antes da pandemia de COVID, depois de reformar a casa original,
daquelas mais simples construídas no início do bairro, que foram sendo demolidas
pouco a pouco para darem origem a prédios de apartamentos de classe média ou
novas casas que custam cerca de um milhão de reais. A reforma levantou uma
fortaleza de muros altos e espessos, com câmeras de vigilância, serpentinas de
arame farpado e cartazes com imagens de cães agressivos com as palavras:
“Cuidado! Cão treinado para matar”, além de uma placa avisando que a casa é
protegida por um sistema de vigilância ligado à polícia militar. No interfone,
um lembrete de que não dão esmolas e nem comida.
O tempo passou, a
pintura descascou, a calçada se tornou descuidada, as plantas ornamentais no
passeio secaram e a impressão atual é de que a fonte de renda do vizinho foi um
pouco reduzida nos últimos anos, como aconteceu com donos de restaurantes e
outros pequenos empresários desde o confinamento da pandemia. O aspecto da casa,
hoje, é de uma réplica em miniatura do presídio da Papuda, conhecido por
receber condenados famosos.
Nunca vi o rosto de qualquer pessoa moradora naquela casa que entram e saem da garagem, entre os movimentos rápidos do portão automático, em carros comuns com vidros escuros, mas a pontualidade e o método sistemático
para funcionar o carro diariamente fazem imaginar que seu dono deve ser um militar
reformado, pois há vários deles morando no bairro e porque tenho a impressão de
ouvir disparos de armas em meio aos fogos de artifício durante jogos de futebol,
especialmente quando o ganhador é o Clube Atlético Mineiro.
Aos sábados, com frequência comparecem amigos para
churrascos, cuja fumaça chega ao meu quintal, apesar deste vizinho estar a três
casas da minha, do outro lado do quarteirão. A música sertaneja, as falas exaltadas
e risadas estridentes se tornam cada vez mais altas com o aumento do teor
alcoólico, mas não abafam o ronco do motor acionado, mesmo em dia de picanha e
cerveja, às 9:45 e 17:45, pontualmente. Vozes femininas raramente superam as vozes masculinas, exceto
nalgumas vezes em que a música “Evidências” é tocada e um coral improvisado por
elas assume com entusiasmo frenético esta espécie de hino ao amor antifeminista.
Apesar do barulho do motor incomodar, ele ainda é menor
comparado às explosões atordoantes que eram causadas por rojões, lançados ocasionalmente na
rua durante a madrugada, provavelmente por alguém daquela casa. Estas bombas
atingiram seu ápice numa manhã de domingo, no início de janeiro de 2023,
enquanto eu acompanhava aterrorizado pela televisão a invasão dos edifícios dos
Três Poderes em Brasília. Depois disso, foram rareando e, desde setembro, pararam. No entanto, ainda não
consigo dormir sossegado, pois permanece a incerteza de nova explosão numa madrugada, já que os verdadeiros autores das bombas jamais
foram identificados ou punidos por perturbação da ordem.
Claro que tudo isso pode ser preconceito meu, mas parece que
conheço esse vizinho tão bem que um dia saberei em quem ele tem votado nas
últimas eleições.
LOR

Não é preconceito, Lor -- são (estas sim) evidências. Seu relato é perfeito -- bem apurado, elegante. O que virou esse nosso mundo, hein?
ResponderExcluirVerdade Vavado , concordo com o João👏🏽👏🏽👏🏽
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