O mutante H4PPY



No mesmo dia em que me submeti à intervenção genética foi que percebi aquilo que hoje reconheço como meu primeiro sintoma: ao sair de casa, notei o ruído de motores funcionando por trás da fileira de pinheiros que isolam o condomínio. Ao invés de ordenar ao carro automático que se movesse em direção ao escritório, mandei que ele seguisse até o final da rua e observei que havia intensa atividade de máquinas pesadas nos fundos do conjunto de mansões. Uma cratera imensa em tonalidades vermelho ferroso era ocupada nas suas bordas por dezenas de tratores e caminhões, que revolviam o minério de ferro, transportando-o até estruturas metálicas com esteiras que despejavam seu conteúdo em vagões estacionados sobre trilhos. Eu jamais percebera a presença daquela mineradora tão próxima. Rastreei informações no mapa virtual e descobri que ela operava ali havia anos, antes mesmo de eu construir minha casa.

Em seguida, no trajeto para centro da cidade tive a impressão de que uma favela havia surgido de repente ao lado da rodovia, pois nunca notara aqueles casebres desconjuntados e cobertos de poeira de minério, onde crianças pareciam abandonadas nas portas dos barracos por entre estreitos espaços de terra batida. Uma cerca eletrônica separava a estrada daquelas centenas de habitações que passavam rapidamente pelo vidro do meu carro e que ficavam a jusante de uma das barragens da mineradora.

Ao chegar no escritório, quando meu assistente executivo apanhou minha maleta na garagem e entramos no elevador com espelhos, reparei que ele parecia descuidado, como se não houvesse dormido, sua gravata estava torta e seu terno desalinhado. Olhei para meu próprio rosto e também me achei com expressão abatida, adoentada. Preciso de um café, disse ao meu empregado. Sim, senhor, ele respondeu e percebi que sua voz tinha uma tonalidade desagradável.

Durante a reunião com a diretoria, senti uma certa tensão na maneira como os papeis eram retirados de pastas, nos toques nervosos sobre as teclas dos computadores, nos olhares furtivos, como se aquelas pessoas tivessem receio de falar comigo. Mirei cada um deles e todos aparentavam estar mais velhos do que no dia anterior e as duas diretoras me pareceram menos bonitas do que quando as selecionei para trabalharem na empresa. Achei os assuntos enfadonhos, repetitivos, reclamei da falta de criatividade geral e encerrei a reunião.

Decidi ir para o clube, onde almoçaria com Jane e depois jogaríamos tênis. Reclamei da comida e achei o vinho ruim, apesar de ser um de meus preferidos, talvez a safra, pensei, embora já houvesse tomado daquela que parecia então intragável. Senti-me cansado para jogar e propus que fôssemos para meu apartamento. Quando Jane já estava nua e não havia qualquer desejo em mim, concluí que algo estava errado e acionei no celular um scan médico.

Depois de posicionar o feixe de luz sobre os diversos pontos de meu corpo conforme as instruções, apareceu na tela o código 7765 e o diagnóstico inicial: “expressão insuficiente da H4PPY – entrar em contato com seu médico – clique aqui”. Sem ter a menor ideia do que significava aquela informação, cliquei onde indicado e confirmei minha identidade digital para a confidencialidade do contato com o médico.

Surgiu a face de uma pessoa que se identificou como o responsável pelo meu acompanhamento de saúde, dizendo que já havia identificado o problema a partir do scan realizado e que eu deveria procurar a clínica pessoalmente. Do que se tratava, perguntei. Ele hesitou um pouco e disse que aparentemente uma virose vinha atingindo algumas pessoas que possuíam a mutação H4PPY e que seria necessária uma intervenção genética para restaurar meu genoma. Perguntou se poderia agendar meu comparecimento naquela mesma tarde e concordei: Jane dormia e minha mulher estava esquiando na França ou nos Estados Unidos, não me lembro.

Googuei o que seria a tal mutação H4PPY, mas há um bloqueio completo de acesso a qualquer informação sobre este assunto e você precisa uma senha que deve constar da certidão de nascimento. Busquei a certidão em meus arquivos eletrônicos e havia, de fato, um código ao lado de uma notificação dizendo que meus pais haviam adquirido o direito de implantar em mim a mutação. Copiei os números e letras e voltei para o navegador que autorizou minha entrada nas informações sobre a H4PPY.

Descobri que a mutação fora desenvolvida por cientistas chineses na geração anterior à minha para alterar determinada proteína que atua no desenvolvimento cerebral, fazendo com que as pessoas que a possuam tenham uma visão mais positiva do mundo, se sintam mais felizes, se importem menos com as tragédias e com os problemas gerais. Pensei que algo devia mesmo estar errado com meu cérebro, pois eu parecia uma pessoa deprimida naquela manhã.

Na clínica, o médico disse que eu seria submetido a uma correção do gene por meio da uma técnica semelhante ao conhecido método CRISP-R e que assim que o códon danificado voltasse a funcionar eu me sentiria melhor. Perguntei se meu problema era comum e ele deu um sorriso discreto. Não posso chamar de comum um problema..., ele respondeu - que pode afetar apenas 0,01% da população, quer dizer, aquelas pessoas que tiveram acesso à patente da mutação H4PPY para implantar em seus filhos. Eu mesmo não a possuo, completou com certa ironia.

Sentei-me numa poltrona confortável e o médico explicou que estava inoculando um vírus que faria a edição do meu DNA e assim que a proteína H4PPY começasse a ser produzida minha visão do mundo retornaria ao normal. Depois de alguns minutos, de fato, notei que minha expressão facial estava menos anuviada, a cor da sala parecia mais brilhante e percebi a beleza dos lábios da enfermeira por baixo da máscara cirúrgica.

De volta para casa, fiz questão de observar a favela ao lado da rodovia e a mineradora ao redor do condomínio. Estavam lá, mas não me causavam qualquer emoção especial. Acho que a intervenção genética funcionou bem e restou apenas esta memória daquele dia, o que não me incomoda.








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