Adeus às armas



Para Eduardo Gontijo, colega de geração, e meus genros, uma nova.


A babá adolescente colocou minha filha caçula com alguns brinquedos sobre a cama de casal e em passiva presença procurou algo para se distrair. A gaveta entreaberta na mesinha de cabeceira deixava à mostra a pistola automática que eu ali mantinha carregada. A babá pegou a arma e começou a fuçar, movendo a trava de segurança sem saber que havia munição no compartimento de disparo. Na paranoia de que alguém pudesse entrar em casa ameaçando minha mulher e filhas, eu deixava uma bala na agulha para precisar de menos tempo para atirar, caso necessário.

Aquela Beretta 635 era minha terceira arma: a primeira, uma cartucheira calibre 32, fora presente de meus pais que implorei a eles quando completei onze anos de idade. Em 1960 isto não era absurdo, pois meu avô possuíra várias armas, assim como meu pai, meus tios, enfim, todos os homens que eu conhecia eram donos de, pelo menos, uma espingarda de caça.

De posse da cartucheira, eu saía para “caçar”, uma palavra pomposa para o ato de atirar a esmo em passarinhos e quaisquer animais selvagens que cruzassem meu caminho nos restos de Mata Atlântica nas imediações de Lambari, a pequena cidade no Sul de Minas onde morávamos. Além da arma de cano longo, costumava trazer na cintura também o revolver de meu pai, um Schmidt-Weston 32 com cabo de madrepérola, que disparava com facilidade à menor pressão do seu gatilho macio.

Muitas vezes saí naquelas expedições exterminadoras com meu primo, um ano mais novo e também armado com uma pistola e um rifle semiautomático calibre 22, que fora herdado de seu cunhado italiano que lutara na Segunda Guerra. Juntos formávamos uma perigosa patrulha com dezenas de cartuchos e balas que gastávamos num dia de artilharia contra pardais, pássaros pretos, gaviões, corujas, preás, enfim, feras sem conta, como dizia a canção infantil. Por sorte não matamos uma pessoa, um trabalhador do campo que estivesse oculto por trás de alguma vegetação, uma criança passante a centenas de metros (que era o alcance letal de nossas armas), um crime que carregaríamos pelo resto de nossas vidas.

Por sorte também não nos matamos mutuamente, porque depois de cansados de tentar acertar animais (que sabiamente desapareciam das imediações depois dos primeiros tiros), resolvíamos brincar de mocinho e bandido (melhor diria de bandido e bandido), escondendo-nos atrás de árvores e disparando nossas armas um contra o outro a uma certa altura acima de nossas cabeças, e o zumbido das balas e as lascas de madeira nos faziam sentir como se estivéssemos nos filmes de faroeste que assistíamos no cinema da cidade.

Para sorte dos pequenos animais, nossa pontaria não era das melhores e a maioria dos alvos sobreviveu ao susto do estampido ensurdecedor dos cartuchos que eu aprendera a reaproveitar com meu avô, recarregando-os manualmente com novas espoletas, pólvora e chumbo, ingredientes comprados nos armazéns da cidade sem qualquer tipo de controle por parte da polícia. Ocasionalmente a espoleta falhava e perdia-se um tiro. A quantidade de pólvora utilizada na recarga dos cartuchos usados devia ser usada de forma controlada e bem medida, mas minha estupidez infantil estimulou-me a tentar aumentar a potência dos tiros acrescentando cada vez mais pólvora e esferas de aço à carga, até que uma explosão terrível estragou a arma. O zumbido constante e a perda parcial da audição são lembranças daquele dia em que tentei matar um belo galo do campo, cujo crime terrível era estar pousado numa cerca a alguns metros de distância.

Ao contrário da velha cartucheira de minha adolescência, a pistola que a babá manuseava próxima à minha filha na cama de casal estava carregada com balas de metal que jamais haviam negado fogo nas vezes em que eu a usara para treinar a pontaria. A jovem encontrou o percussor e conseguiu movê-lo para trás: a arma foi engatilhada.

Pronto para atirar era a situação em que me imaginara inúmeras vezes diante de um suposto assaltante, pior ainda um estuprador, que invadisse minha casa. A sequência de ações na qual eu atirava no bandido era projetada num filme mental numa certa volúpia que se repetia em vigília, mas que costumava voltar em pesadelos noturnos nos quais eu tentava atirar no indivíduo, mas a arma escorregava como se estivesse molhada em azeite, ou eu não tinha forças para pressionar o gatilho ou as balas saiam impotentes como caroços de azeitona cuspidos. Nesta agonia insuportável diante do invasor, acordava em sobressalto duvidando da minha capacidade de ser o verdadeiro homem da casa.

No entanto, este papel de homem defensor perpétuo da família não era esperado pela minha mulher, que, ao contrário, abominava armas e repetia seus pedidos para que não tivéssemos armas em casa, para que eu não ensinasse minhas meninas a atirar, para que não fizéssemos tiro ao alvo com os amigos no muro de nossa casa durante os churrascos regados a muita cerveja, para que não andasse com a pistola no porta-luvas do carro quando saíamos à noite. Pior ainda: eu a obrigava a colocar a pistola em sua bolsa quando saíamos do carro. Meus ouvidos educados na cultura machista e ensurdecidos pelos estampidos não ouviam aqueles acordes racionais, de bom senso e civilização que ela emitia incansavelmente.

A babá pressionou o gatilho e a arma disparou na direção da minha filha. O projétil deve ter passado um pouco acima de sua cabeça e atingiu a parede por trás dela. Com o barulho, a jovem largou a arma sobre a cama, pegou a menina que chorava assustada, correu para fora do quarto e trancou a porta como se quisesse apagar o que acabara de acontecer. Quando chegamos do trabalho, a babá nos contou em prantos o que havia acontecido. Minha mulher, estarrecida, ordenou que eu desse um fim àquela pistola maldita, que por pouco teria provocado a morte de nossa filha caçula.

Imbecilmente, ainda contemporizei, enrolando a arma nuns panos e colocando-a escondida por trás de umas malas na parte superior de um guarda-roupas. Para viver sem uma arma eu precisaria confiar na capacidade da polícia para nos proteger e isto ainda não era (?) fácil no Brasil. Seria preciso uma grande mudança de mentalidade para eu ser capaz de entregar minha própria defesa ao Estado, ao Grande Leviatã, desistindo de me defender egoisticamente para passar a investir minhas energias na construção da segurança coletiva de forma democrática, desarmada e pacífica.

Por casualidade minha filha não fora atingida. Por casualidade minha arma não estava no porta-luvas do carro durante algumas discussões de trânsito. Por casualidade um vizinho foi ferido apenas de raspão no peito quando uma bala explodiu no compartimento de entrada no momento em que tentei destravar um rifle automático que comprara quando morávamos num sítio próximo ao Zoológico de Belo Horizonte. Por muitas casualidades não matei ou feri alguém gravemente. Mas não foi por casualidade que mais de 50 mil pessoas foram mortas por armas de fogo em nosso país somente no último ano: a maioria é formada por jovens, pobres e negros (ver artigo no jornal NEXO clicando AQUI ).

Ainda se passariam vários anos para que eu desse mais um pequeno passo no sentido da libertação da minha dependência pela arma: joguei a munição fora. Fui até a lagoa da Pampulha e lancei uma a uma as balas n’água, dando a cada uma delas o nome de um dos homens que formaram minha imagem masculina: meu pai, meu avô, meus tios, meus amigos fulano, sicrano.... Voltei para casa me sentindo inseguro, emasculado, frágil, com medo de que em algum momento futuro não pudesse mais reagir a uma agressão...

Somente durante a campanha de desarmamento é que me livrei em definitivo da pistola, entregando-a num batalhão da Polícia Militar. Foram, portanto, décadas para desconstruir o modelo aprendido na infância no qual homens “de verdade” se afirmam pela força e pelo sexo. Nesta ideologia, a musculatura possante e a arma de fogo fazem parte de nossa identidade tanto quanto um pênis.

O lado bom de dar adeus às armas foi libertar-me da violência latente que carregava como um fardo paranoico e sofrido para cumprir o papel machista que me fora imposto desde o nascimento. Agora, me sinto mais integrado ao mundo, mais parte do destino coletivo, pois para melhorar minha segurança é preciso melhorar a segurança de todos. Acho que vou me tornando uma pessoa melhor, porque um homem é muito mais do que seus bíceps e seu pênis.

Talvez haja um instinto primitivo para a violência masculina que teria sido evolutivamente necessário nos nossos tempos de caçadores coletores (ver BEHAVE de Robert Sapolsky), mas que vai se tornando cada vez mais inútil e indesejável à medida que avança o processo civilizatório. Dizem que que a civilização progride de funeral em funeral: à medida que as pessoas (e suas ideias arcaicas) vão sendo substituídas pelas novas gerações.

Diante destes velhos (como eu) e suas milícias digitais de jovens envelhecidos que defendem o desmonte do Estado e o rearmamento individual como solução para a violência social, fico feliz ao saber que dois dos meus genros jamais tocaram numa arma de fogo.

Há esperança.



PS: O título é uma referência ao famoso livro de Ernest Hemingway (Adeus às Armas, de 1929) sobre o qual foram feitos filmes de sucesso em Hollywood. O romance clássico, apesar do nome sugerir (hoje) uma crítica às armas, na época reforçava as ideias de honra, patriotismo, valentia e defesa das glorias da guerra. Uma das frases famosas do livro é: “Os covardes morrem muitas vezes. O corajoso morre uma só”.

Ser corajoso, neste sentido de ser violento, ser capaz de agredir, estuprar ou matar uma pessoa, é um mito machista encravado profundamente em nossa cultura, como nos revela a ideologia latente no maior romance da língua portuguesa “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa. Ver o ensaio que publiquei “Riobaldo: o medo e a covardia” 
no livro “Nos sertões de Guimarães Rosa”, editado pelo saudoso Carlos Alberto Corrêa Salles Editora CRV, 2011.


Comentário de João Amílcar Salgado

Querido Luiz
Seu adeus às armas me evoca muitas coisas. 
A começar, que meu pai, como o seu, tinha um chimite 32. Meu avô foi espancado quando enfrentou racistas que agrediram pobres negros. Os amigos sugeriram que meu pai se armasse enquanto durasse o inquérito. Meu irmão vendeu o chimite e eu nem quis saber como.
Nós, sul mineiros somos herdeiros de violência contra índios e quilombolas, em geral armas de fogo contra flechas. Os genocidas são nossos ascendentes.
A família Rodrigues carrega uma história de perseguições e, como você bem mostra, trazem no genoma o instinto de autodefesa. Quando optaram por ser bandeirantes aqui, passaram para o lado perseguidor. Em Portugal foram perseguidos e entre eles sobressaiu um médico de grande altivez: Amato Lusitano. Sobressaiu outro que brilhou como artista: Velásquez
Com tantos perseguidos mortos, evoco, como você, Hemingway, no outro livro POR QUEM OS SINOS DOBRAM, cuja epígrafe é o verso do inglês John Donne, que viveu entre o século 16 e 17: “A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
Abraço,
joão.

Comentários

  1. Excelente relato e escrita! Bem relevante e contextualizado com o bate-papo de hoje!

    Um abraço!

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