Machistas graças a deus

 



Para Cris e Zé


Com 40 anos de atraso li o romance “O Mulo” de Darcy Ribeiro, escrito cerca de 30 anos depois que Guimarães Rosa publicara “Grande Sertão: Veredas”. Todo este tempo foi necessário para que eu pudesse compreender melhor o que está escrito nestes livros.

Sem spoiler, o paralelo entre os dois personagens principais, Coronel Filó e Riobaldo, é inevitável: ambos são fazendeiros poderosos, cercados de jagunços fiéis, vivendo seus últimos dias no interior do Brasil, depois de terem passado por tempos de violência e paixões. Sabemos de suas histórias pelos monólogos que realizam, recordando suas lutas e vivências – o Mulo, apelido do Coronel Filó, - numa confissão escrita a um suposto padre, e Riobaldo conversando prolongadamente com um interlocutor da cidade, nós os leitores. Ambos os personagens são católicos e questionam seus destinos nas mãos de Deus, do Diabo, remoendo episódios cruciais de suas vidas em busca de compreensão e sentido.

Apesar de estilos literários diferentes, - Rosa com a poética de Diadorim amenizando Riobaldo - é como se Darcy tivesse lido o Grande Sertão e, com sua imensa experiência política, além de ser um grande sociólogo-antropólogo, dissesse: vou mostrar a vocês o verdadeiro Riobaldo. E então ficamos horrorizados com a trajetória de violência sofrida e praticada cotidianamente no interior do Brasil, um país desigual, colonizado, falocêntrico, machista e ainda escravagista da primeira metade do século vinte.

Um Brasil que, infelizmente ainda não está extinto nas zonas de fronteira do agronegócio, como mostra Eliane Brum.

Em 2006, escrevi uma carta para minha filha Ana, reconhecendo, - depois de reler perplexo o Grande Sertão, - a crítica que ela havia feito ao Riobaldo, dizendo-me que ele era covarde, machista, violento e estuprador. Esta carta acabou se tornando um ensaio (Riobaldo, o medo e a covardia), premiado num concurso de literatura da APUBH e publicado no livro do saudoso Carlos Alberto Corrêa Salles (Nos sertões de Guimarães Rosa). Se eu tivesse lido o Mulo antes de escrever a tal carta, provavelmente teria dito à Ana: você tem razão sobre Riobaldo (ou o Mulo) e sobre quase todos nós, os homens dos últimos cem anos. Somos machistas, graças, inclusive, aos cultos religiosos que nos justificam porque reverenciam um deus macho e todo poderoso.

Os tempos vão mudando e a violência de ontem, que me passou desapercebida na primeira leitura de Grande Sertão, hoje me é insuportável.

Riobaldos e Mulos, nós machos, basta!


Quem desejar o texto original de 2006 sobre o medo de Riobaldo, mande-me um e-mail e terei prazer em enviar o PDF (rodrigues.loc@gmail.com )

Desconhecia este texto publicado por Jean Pierre Chauvin, da USP, e que amplia essa conversa, embora ignore o machismo estrutural no romance.



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