Quem somos?

 



Quem é essa mulher,
que canta sempre esse estribilho?

Angélica - Chico Buarque



Nesse último domingo, de cada dez pessoas brasileiras aptas a votar, duas não compareceram, quatro votaram no ex-metalúrgico e quatro votaram no ex-capitão. Passei a noite buscando compreender estes acontecimentos, para me preparar melhor para os próximos terceiros e oitavos turnos.

Ao contrário de seguir meu impulso natural para dividir as pessoas entre nós e eles, procurei saber o que haveria de comum entre aqueles que votam em Lula ou em Bolsonaro. Coloquei de lado, temporariamente, as acusações de corrupção que são usadas contra ambos (embora não sejam equivalentes) e fui em busca de algo mais profundo que eles poderiam representar.

Claro, o carisma de ambos é indiscutível, demonstrando aquela nossa primitiva necessidade de nos agarrarmos a pessoas maiores do que nós para sobrevivermos ao medo de afogamento no pantanal dos anônimos e invisíveis. Assim, os comportamentos espontâneos de ambos nos geram profunda intimidade, que se transforma numa identificação de amor (e ódio pelos seus oponentes).

No entanto, para além do carisma, desconfio também haver um valor compartilhado entre eleitores de ambos os lados: todas as pessoas querem ser mais ricas. Sejam mais ricas para saírem da miséria e da fome em que vivem, sejam mais ricas para não precisarem trabalhar duramente todos os dias ou para desfrutarem os mesmos privilégios dos vizinhos e colegas.

Porém, as pessoas não querem apenas ser mais ricas, mas exigem que essa “riqueza” seja reconhecida como merecida. Então, é possível que o desejo de subir na vida seria comum, mas os critérios de merecimento seriam os divisores de águas entre as duas partes do Brasil que se revelaram na eleição de ontem: o mérito próprio (como resultado do individualismo) ou o mérito histórico (como resultado das condições sociais).

A divergência sobre as cotas sociais demonstra estas diferentes ideias de mérito: segundo os individualistas, a pessoa tem que alcançar seus objetivos por ela mesma (mérito individual), segundo os socialistas, a pessoa tem que receber apoio social para compensar as desigualdades sobre as quais ela não tem culpa (mérito histórico).

Por trás dos malabarismos eleitorais, talvez aquilo que parte da população brasileira estaria escolhendo, de fato, seria entre o capitalismo (como chamou a atenção o Fernando Gabeira, ao comentar a vitória de Bolsonaro em São Paulo) ou outras formas alternativas de vida. 

É interessante lembrar que a direita torna explícita a ideia de que sua escolha é contra o “comunismo”, que ela entende como o fim da meritocracia individual (especialmente o fim do “merecimento” das fortunas, da herança e das grandes propriedades). Ao contrário, o campo político reunido em torno de Lula não se opõe claramente ao capitalismo, mas defende uma proposta difusa de “democracia”.

O voto em Bolsonaro (como em outros dirigentes de direita em países onde a socialdemocracia vem perdendo força) pode significar que o valor ideológico da meritocracia individual (valor supremo do capitalismo - depois da propriedade privada, é claro) seja forte o suficiente para seus eleitores ignorarem a tragédia humana e ambiental que ele causou nestes anos de desgoverno.

De madrugada, concluí que precisamos fazer com que a maioria da população não tenha qualquer sentimento de vergonha por defender e receber direitos que são de todos, que todos merecem. É preciso resgatar e aprofundar a ideologia do merecimento histórico, ou seja a proposta do socialismo como um sistema de correção das desigualdades.

Enquanto isso, tentaríamos esclarecer para aquela população que ainda acredita em vencer por conta própria que só existem duas classes sociais (como disse minha filha Maria Helena): a 99% que paga boletos e a 1% que recebe o pagamento pelos boletos. Apenas uma destas classes se beneficia da meritocracia individual e é mais fácil ganhar na megassena do que mudar de classe.

Finalmente, penso naqueles que não compareceram à votação de ontem: os doentes, os impedidos e aqueles que, cansados, desistiram. Este texto sugere que o tempo e os fatos ainda não me inscreveram neste último grupo.



Lor

Primeiro dia do Segundo Turno


Comentários

  1. Concordo plenamente com o que foi publicado. É lamentável observar o que tantas pessoas não enxergam ou não querem ver. O meu sentimento é de tristeza misturado com decepção. O atual “desgoverno “ não me representa e jamais vai me representar. Então, mesmo decepcionados, entristecidos, só nos resta lutar! Por um Brasil mais igual, justo, democrata!!! Sigamos em frente! A luta continua e agora mais forte!!!

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