O outro lado

 


 Bruno CL Cota[i]

 

Segunda-feira, 5:39. Alguns raios de sol atravessaram delicadamente umas poucas frestas da janela, e se insinuaram sobre os meus olhos, que atenderam ao afago luminoso e se abriram vagarosamente. O ambiente onírico que acabara de iniciar, e que poderia até terminar em uma nova soneca, foi abruptamente dilacerado pelo alarme do celular, que entrecortou meus ouvidos e feriu toda minha alma, meu núcleo acumbens[ii] e a minha poesia, enquanto me empenhava em coordenar os dedos para desligá-lo.

Já eram 5:40, momento em que a cerimônia de despedidas cotidianas se inicia: cama, esposa, filhos, cachorro, calopsitas. Nessa ordem. Banho, barba, roupa, pão, café e checklist na agenda. Tudo conforme o roteiro cotidiano. Na rua, o engarrafamento de sempre. Gente impaciente, gente com pressa. Eu impaciente com a impaciência dos outros, também com pressa.

Comemorei a pequena sorte de encontrar uma vaga de estacionamento a pouco mais de 100 metros do hospital, distância que facilmente percorreria dentro dos cinco minutos que me restavam. No último sinal de pedestre fechado antes do meu destino, aproveitei a breve parada para pegar o meu crachá e conferir algumas mensagens no celular, essas coisas bestas que a gente faz nos pequenos intervalos cotidianos. Ainda tranquilo por saber que não chegaria atrasado, percebi, entre os carros apressados que iam e vinham, do outro lado da avenida, entremeado numa meia dúzia de pernas, um corpo caído no chão. "Será que ela está morta?”, pensei imediatamente ao ver que as poucas pessoas que estavam ao seu redor não a socorriam.

Enquanto o sinal não abria, tentei desvendar parte daquela cena. Era um corpo de mulher, negra, com algumas madeixas grisalhas, roupas simples, e uma pequena bolsa a tiracolo. Mexeu os braços e as pernas – “está viva!”, pensei... Teria sofrido uma convulsão? Uma síncope? Hipoglicemia? Acidente vascular cerebral? Intoxicação alcoólica ou por outra droga? Atropelamento? Essa nuvem de hipóteses diagnósticas invadiu a minha cabeça, quase instintivamente, junto com um inevitável estado de prontidão para socorrê-la, semelhante a uma espécie de reflexo condicionado pelos 12 anos de trabalho em unidades de urgência e emergência médica.

Após poucos segundos, que pareceram horas, o sinal se abriu, e me dirigi apressadamente ao outro lado da rua. A poucos passos da mulher, meu coração, que já se acelerava na preparação para prestar os primeiros socorros, foi sendo tomado por um misto de tristeza e perplexidade. A meia dúzia de pernas que havia visto do outro lado da avenida já não estava mais ao seu redor. E as outras que vinham, por ela simplesmente passavam, no máximo com algum cuidado para não a atropelar, assim como os carros fizeram antes do sinal abrir. Algumas pessoas ainda pareciam se esforçar para ignorá-la, enquanto outras a ignoravam automaticamente.

Agachei-me ao lado da mulher deitada no asfalto, próxima à calçada, e percebi que ela não apresentava sinais de gravidade clínica ou de risco iminente de morte. Teria uns 50 anos? Estava consciente e respondia ao que eu lhe perguntava, mas se recusava a dizer seu nome, assim como a atender meu pedido de sair daquele local perigoso. Suspeitei que ela poderia ter tentado suicídio, já que minhas hipóteses diagnósticas do outro lado da avenida não faziam mais sentido. Com sua recusa em se levantar, passei a fazer aquilo que é essencial nesses momentos: sinalizar para os automóveis que viriam logo após o sinal se abrir, e que certamente passariam a poucos centímetros da cabeça daquela mulher. Em seguida, liguei para o serviço de resgate.

Entre as trocas de sinal, enquanto aguardava a ambulância, eu observava algumas pessoas que se aproximavam. Na maioria das vezes demonstravam mais curiosidade do que preocupação com a mulher e se dirigiam a mim, perguntando sobre o que havia acontecido. Entre algumas buzinas e roncos de motores, consegui ouvir comentários, que talvez fossem ouvidos pela senhora no chão: “deve ter passado a noite inteira bebendo, ela tá até com bolsa, olha só...”. Ou: “ah, isso com certeza é droga, olha como tá estranha...”

Cada vez mais angustiado, pelo que via, ouvia e pela demora do SAMU, senti um pouco de conforto quando duas estudantes de medicina se aproximaram da mulher e se dispuseram a cuidar dela até a chegada da ambulância. Continuei sinalizando para os carros não nos matarem, enquanto elas se empenhavam no cuidado da senhora, tranquilizando-a. Após alguns minutos, disse a elas que se precisassem poderiam seguir para sua aula. Mas elas fizeram questão de se manter ali e de me ajudarem até a chegada do SAMU, o que me trouxe uma ponta de alegria e de esperança, após tantas decepções em tão pouco tempo.

Segundo as informações da equipe de resgate, que logo reconheceu a mulher ao chegar, ela possuía um transtorno psiquiátrico grave. Ainda disseram que ela era frequentemente resgatada em situações semelhantes, e vivia em situação de rua, o que dificultava a sua adesão ao tratamento prescrito pela psiquiatria.

Resolvida a situação - pelo menos naquele momento- despedi-me da equipe do SAMU e das estudantes, com quem compartilhei alguns sentimentos daquela manhã. Elas me ouviram com atenção, nos despedimos com um tímido abraço e seguimos os nossos caminhos.

Às 7:50, finalmente dentro do hospital aonde trabalho, lembrei-me da minha preocupação obsessiva de chegar sem atraso, e resolvi guardar o canhoto do ponto biométrico como lembrança. Estava ciente de que eu não havia feito nenhum ato heroico, mas sabia que era o que deveria ter feito, independente do que motivou aquela mulher a se debruçar ao solo.

Ao contar a colegas, ouvi inicialmente algumas palavras solidárias pela minha atitude. O assunto tomou conta da sala aonde as médicas e médicos descansam, até mesmo porque muitos colegas haviam me visto na situação descrita, quando também chegavam ao hospital. Muitos conheciam a paciente, por ser atendida em outros hospitais por causas semelhantes à que ocorrera diante de mim. À medida em que o assunto se disseminava por outros cantos da sala, era possível ouvir alguns comentários em tom de deboche e desprezo pela mulher. Para alguns, eu era mais um que havia acabado de cair na sua “simulação” pois o que ela quer sempre é “chamar a atenção”.

Sem mais tempo para conversas, pela necessidade de assumir o plantão para o qual, agora, sim, eu já estava bastante atrasado, e também pelo desconforto ao ouvir aqueles comentários, deixei a sala e segui o meu caminho solitário para o vestiário. Percebi que, apesar do empenho de alguns colegas, não fui tomado pela raiva que eles pareciam sentir daquela mulher.

O tempo todo considerei que a atitude daquela mulher decorria de um profundo adoecimento mental, independente de qual fosse a sua intenção. Ainda que parecesse uma atitude para “chamar atenção”, não seria esse comportamento uma espécie de grito silencioso, como um verdadeiro pedido de socorro, no meio de um mundo tão indiferente?

Além disso, quem poderia garantir que todas as vezes em que ela fosse encontrada caída no asfalto a causa seria a mesma?

Recuperei a confiança na atitude que havia tomado, e me vi satisfeito por ter resistido ao embrutecimento dos meus sentimentos. Por outro lado, permanecia a tristeza ao pensar que aquela meia dúzia de pernas indiferentes ao sofrimento alheio, que esperavam o sinal abrir, eram apenas algumas, dentre muitas, dentro e fora do hospital.

Hoje, quando encontrei na carteira o comprovante do ponto eletrônico de entrada no hospital, pude transformar aqueles momentos em palavras. E entre as lembranças, está a imagem das duas estudantes que também zelaram por aquela mulher. Alegro-me que elas não tenham tido dúvidas em mudar os roteiros das suas agendas naquela manhã.







Dedico ao querido amigo Lor, que não só me inspirou a redigir esse texto, como auxiliou na sua produção, com cuidadosa e enriquecedora análise, das linhas às entrelinhas.

Resposta: é um prazer trabalhar com você e acolher suas ótimas ideias e sensibilidade artística neste blog. Lor

Notas

[i] Bruno CL Cota é médico, músico, mestre e doutorando no Programa de Pós Graduação em Saúde do Adulto da Faculdade de Medicina, trabalha no Hospital das Clínicas da UFMG e no Centro de Referência em Neurofibromatoses do mesmo hospital e é professor na Faculdade de Medicina da UNIFENAS-BH.

[ii] O núcleo accumbens consiste em uma região do cérebro que exerce papel fundamental na sensação de prazer. Ele é responsável pelo processamento do mecanismo de recompensa, que pode ser ativado por diversos estímulos prazerosos, como comidas calóricas, atividade sexual e música, dentre outras.






Comentários

  1. O conhecendo há anos, não esperava nada menos do que a atitude que teve. Também não me surpreende a sua sensibilidade de continuar estranhando o que deve ser estranhado. Há de nos causar espanto um ser humano caído, assim como a indiferença ao sofrimento do outro. Artistas são os que insistem em sobreviver e que conseguem extrair arte dos escombros de um laço social cambaleante. Suas palavras tocam a humanidade, onde ela continua viva.

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