Ciça, mulher, cartunista e poeta

 


Os amigos Facundos combinaram que cada um de nós escolheria um poema para ler hoje, durante nosso encontro semanal.

Escolhi “Pequenos assassinatos” da cartunista Ciça, que admiro há dezenas de anos, como pessoa e artista. Eu a seguia, tentando aprender sua arte, na tira “O Pato” na Folha de São Paulo, até 1985, quando ela parou de ser publicada.

Thalma e eu fomos carinhosamente recebidos por ela e seu marido Zélio Alves Pinto em sua casa em São Paulo, quando lá morávamos na década de 80.

Veja mais sobre a Ciça em 2020 numa entrevista para Folha de São Paulo.

Antes do poema, reproduzo abaixo sua tira publicada há mais de 40 anos, sobre o “excludente de ilicitude” defendido pelos policiais militares bolsonaristas, que cometeram mais um massacre no Rio de Janeiro nesta semana.



Seu poema, de 1978, nos lembra a antiga luta das mulheres.



Pequenos assassinatos



Ai, ângelas, ai josefinas

ritas de cássia e odetes

sônias, suzanas, marias

gláucias, deises, luzinetes –

        Dormindo nos cemitérios

em fundos de tumbas frias

no poço de suas sinas

imóveis, enluarados

seus corpos documentados.



Das fotos, já nos arquivos

não constam seus suspiros

nem seus passos de meninas

- seu medo de quarto escuro –

Nem boneca nem ciranda.

Nem seus choros. Nem seus risos.

Em sua pele de mortas

em preto-e-branco de frente

em preto-e-branco de costas

as marcas:

        de instrumento contundente

de tiro, punho, facada

fuzil, navalha ou veneno

        - Meninas, que mundo pequeno.

Em que olho não paga olho

nem dente compensa dente.

Os fios de sangue correndo

desenhos de teia e teia

de fio a rio e oceano –

o sangue vai se juntando.



Que artes de advogados

nos tribunais defendendo:

Se era pobre se era rica

se cai na rua ou na cama

quanto mais se joga lama

mais brilhante o caso fica.



Os juízes vão julgando

os júris absolvendo

mas nunca falta nas bancas

vários crimes passionais.

Ah, que bem-vindo aumento

nas tiragens dos jornais:

Mulher que brinca com a sorte

        (- Ela fez isso comigo?!)

merece pena de morte.

E o sangue vem.

Vai juntando numa poça

represa, vermelho açude

que não há tempo no mundo

que faça coagular.

 

Maridos que bem guardados

      seus possíveis cornos têm

            durmam seu sono sossegados

            pois nessa rubra piscina

            (quem sabe o que traz a vida?)

            poderão se for preciso

            sua honra comprometida

            lavar um dia também –

            (é sempre mais confortável

            saber-se assim de antemão

            sereno e justificado).



Mas o tempo passa e passa,

que morta, morta ameaça.

Mulher desencaminhada

que já não sonha e não sente

- homem traído e vingado

assassino mas honrado,

já se despem das manchetes.

A plateia indiferente

suspira discretamente

e espera o próximo ato.













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