Excrementos públicos
Centro de Belo Horizonte, rua São Paulo, 900, dez e trinta da manhã de uma segunda feira, uma pessoa para de pé sobre a grade metálica no solo da calçada, possivelmente um exaustor de ar de compartimentos subterrâneos, construído ao lado de uma árvore e de uma lixeira. Aquela pessoa está de costas para mim, sua idade é incerta, talvez uns vinte anos, e carrega uma mochila de plástico. Seu gênero é ambíguo dada a extrema magreza, suas roupas esgarçadas estão imundas, os cabelos emaranhados e cobertos de sujeira, tornando aquela pessoa uma espécie de continuidade excrescente entre a fuligem do chão, o cinzento da rua e o cimento da cidade.
Subitamente, a pessoa abaixa as calças e começa a defecar sobre a grade de metal. Assusto-me. Olho ao redor e parece que ninguém está vendo o mesmo que eu: o porteiro continua lendo seu jornal, os pedestres desviam impávidos sua trajetória, os motoristas e passageiros parados no sinal fechado não movem seu olhar para aquela pessoa de cócoras defecando naquela esquina.
Depois de um tempo se espremendo, há alguns fragmentos de fezes sob seu corpo e aquela pessoa começa a vasculhar a mochila, de onde retira pequenos pedaços de papel, que tenta superpor uns sobre os outros para se limpar. Os papeis se desorganizam, restos de fezes grudam nos seus dedos, que são esfregados na calçada. Volta a reunir os pedaços de papel sujo e os passa novamente na bunda, trazendo-os para diante de seu rosto, que eu não enxergo. Em seguida, se levanta, ajeita as calças e vai até a lixeira, de onde traz um saco plástico rasgado, com o qual empurra as fezes pelas gretas da grade, deixando uma mancha escura no solo. Sempre de costas para mim, joga o plástico melecado ao pé da lixeira e se afasta do meu campo de visão. Em nenhum momento ele demonstrou qualquer preocupação em esconder ou dissimular o que estava fazendo, como se apenas ele estivesse ali, no meio de uma rua movimentada, no centro de uma grande cidade.
Continuei imóvel de dentro do saguão do edifício aonde fora renovar minha carteira de habilitação, perplexo, com a impressão de que somente eu vira o que vi. Sentia-me com pena daquela pessoa jovem, solitária em sua degradação pessoal e abandonada pela sociedade. Seria um dependente de drogas? Um doente mental? Ou ambos? Não importa: era, seguramente, alguém invisível.
Como é possível que tenhamos chegado a uma situação social de tamanha indiferença em relação aos pobres, aos desafortunados, aos excluídos dos benefícios da engrenagem produtiva capitalista?
Lembrei-me das cenas descritas por Primo Levi sobre os judeus que eram transportados de trem pelos nazistas para os campos de extermínio, empilhados em vagões de gado, por dias e noites sem quaisquer condições de higiene. Quando os trens de passageiros cruzavam os comboios da morte, os elegantes alemães viam homens, mulheres e crianças imundos, fazendo suas necessidades onde podiam, completamente despojados de sua dignidade, e concluíam: Os judeus são mesmo animais! - o que naturalizava o seu genocídio.
Ainda abalado pela cena que presenciei, soube que os militares farão um desfile de blindados em Brasília, num gesto de claro apoio ao presidente Bolsonaro e que será uma intimidação aos deputados que podem rejeitar o voto impresso, a bandeira do presidente para tumultuar as eleições e a democracia.
Bolsonaro vomita mentiras sobre as urnas, pauta a nação com suas manobras golpistas, apita, e seus cães fascistas atendem ao chamado.
Esta marcha militar é para desviar nossa atenção do desfile fúnebre de mais de meio milhão de mortos pela política genocida na condução da pandemia.
Os tanques novos e reluzentes vão nos amedrontar com a ameaça de golpe, fazendo-nos esquecer o desmonte já provocado na democracia e nas instituições públicas do país.
A fumaça dos motores dos blindados vai disfarçar o mau cheiro da corrupção articulada entre centrão e militares na compra das vacinas e outras negociatas.
Portanto, amanhã será mais um dia perdido na luta contra a pobreza, contra a desumanização dos excluídos, contra a destruição da natureza.
A invisibilidade daquele homem defecando na rua possui uma ligação profunda com a visibilidade extrema de qualquer palavra defecada pela boca de Bolsonaro.
Subitamente, a pessoa abaixa as calças e começa a defecar sobre a grade de metal. Assusto-me. Olho ao redor e parece que ninguém está vendo o mesmo que eu: o porteiro continua lendo seu jornal, os pedestres desviam impávidos sua trajetória, os motoristas e passageiros parados no sinal fechado não movem seu olhar para aquela pessoa de cócoras defecando naquela esquina.
Depois de um tempo se espremendo, há alguns fragmentos de fezes sob seu corpo e aquela pessoa começa a vasculhar a mochila, de onde retira pequenos pedaços de papel, que tenta superpor uns sobre os outros para se limpar. Os papeis se desorganizam, restos de fezes grudam nos seus dedos, que são esfregados na calçada. Volta a reunir os pedaços de papel sujo e os passa novamente na bunda, trazendo-os para diante de seu rosto, que eu não enxergo. Em seguida, se levanta, ajeita as calças e vai até a lixeira, de onde traz um saco plástico rasgado, com o qual empurra as fezes pelas gretas da grade, deixando uma mancha escura no solo. Sempre de costas para mim, joga o plástico melecado ao pé da lixeira e se afasta do meu campo de visão. Em nenhum momento ele demonstrou qualquer preocupação em esconder ou dissimular o que estava fazendo, como se apenas ele estivesse ali, no meio de uma rua movimentada, no centro de uma grande cidade.
Continuei imóvel de dentro do saguão do edifício aonde fora renovar minha carteira de habilitação, perplexo, com a impressão de que somente eu vira o que vi. Sentia-me com pena daquela pessoa jovem, solitária em sua degradação pessoal e abandonada pela sociedade. Seria um dependente de drogas? Um doente mental? Ou ambos? Não importa: era, seguramente, alguém invisível.
Como é possível que tenhamos chegado a uma situação social de tamanha indiferença em relação aos pobres, aos desafortunados, aos excluídos dos benefícios da engrenagem produtiva capitalista?
Lembrei-me das cenas descritas por Primo Levi sobre os judeus que eram transportados de trem pelos nazistas para os campos de extermínio, empilhados em vagões de gado, por dias e noites sem quaisquer condições de higiene. Quando os trens de passageiros cruzavam os comboios da morte, os elegantes alemães viam homens, mulheres e crianças imundos, fazendo suas necessidades onde podiam, completamente despojados de sua dignidade, e concluíam: Os judeus são mesmo animais! - o que naturalizava o seu genocídio.
Ainda abalado pela cena que presenciei, soube que os militares farão um desfile de blindados em Brasília, num gesto de claro apoio ao presidente Bolsonaro e que será uma intimidação aos deputados que podem rejeitar o voto impresso, a bandeira do presidente para tumultuar as eleições e a democracia.
Bolsonaro vomita mentiras sobre as urnas, pauta a nação com suas manobras golpistas, apita, e seus cães fascistas atendem ao chamado.
Esta marcha militar é para desviar nossa atenção do desfile fúnebre de mais de meio milhão de mortos pela política genocida na condução da pandemia.
Os tanques novos e reluzentes vão nos amedrontar com a ameaça de golpe, fazendo-nos esquecer o desmonte já provocado na democracia e nas instituições públicas do país.
A fumaça dos motores dos blindados vai disfarçar o mau cheiro da corrupção articulada entre centrão e militares na compra das vacinas e outras negociatas.
Portanto, amanhã será mais um dia perdido na luta contra a pobreza, contra a desumanização dos excluídos, contra a destruição da natureza.
A invisibilidade daquele homem defecando na rua possui uma ligação profunda com a visibilidade extrema de qualquer palavra defecada pela boca de Bolsonaro.
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