Do Cerrado à Antártica

 


Reproduzo abaixo o vídeo e em seguida o conteúdo de uma palestra que realizei no Simpósio da Semana Antártica da UFMG, a convite da professora doutora Michele Macedo Moraes, a quem agradeço porque a preparação para a mesa redonda permitiu-me rever minha trajetória científica na Fisiologia do Exercício.



Antes de iniciar esta palestra, é fundamental dizer que atingimos hoje 400 mil mortes pelo COVID-19 no Brasil e dezenas de milhares destas mortes poderiam ter sido evitadas pelo governo genocida de Bolsonaro e seus apoiadores.







(Quem desejar uma cópia do texto em PDF com todas as ilustrações, basta enviar e-mail para rodrigues.loc@gmail.com )

Dedico ao meu irmão Ernesto Carneiro Rodrigues, que fez a cobertura jornalística, pelo jornal O Globo (1982), da primeira expedição brasileira à Antártica, o que se tornou minha primeira ligação afetiva com o continente. Ernesto é o autor de um documentário sobre a Antártica realizado recentemente:



Introdução 

Quais são e de onde vieram as perguntas científicas sobre a fisiologia do exercício que estão sendo estudadas na Antártica? Para responder a esta questão, preciso fazer um breve relato da trajetória realizada por cientistas do Laboratório de Fisiologia do Exercício (LAFISE), criado na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais, numa região geográfica nos limites do bioma Cerrado, de onde saíram pesquisadores para realizar estudos sobre a termorregulação humana na Antártica.



Foto realizada em torno de 2005 com os professores Nilo Resende Viana Lima, Emerson Silami Garcia, Danusa Dias Soares, Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues e Luciano Sales Prado (sentados) e diverses alunes de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado diante do LAFISE.


Concebido na década de 70 como um instrumento para o desenvolvimento e aplicação de tecnologias destinadas ao esporte de competição, o LAFISE sofreu várias transformações ao longo de sua existência. Implantado na época da Ditadura Militar, os fundadores eram militares e médicos com formação militar, os quais pretendiam contribuir para o chamado Projeto Brasil, que almejava transformar o país numa potência esportiva, como uma espécie de vitrine para as supostas qualidades dos governos militares de direita. Neste sentido, o esporte foi amplamente explorado como uma fonte de simbolismos ideológicos que enalteciam a competição, a meritocracia, a hierarquia, a disciplina com as vitórias dos atletas brasileiros.

Neste contexto, as primeiras atividades e relatos científicos e tecnológicos produzidos no LAFISE foram avaliações de seleções brasileiras de voleibol e handebol e times de futebol profissionais. O objetivo destas intervenções era fornecer informações sobre a saúde assim como características antropométricas e fisiológicas dos atletas, para que os técnicos e treinadores pudessem explorar melhor o seu potencial em competições. Esta vertente de atividades do laboratório esteve presente ao longo de sua história, em maior ou menor intensidade, estimulada e desenvolvida especialmente pelo professor Emerson Silami Garcia.

Naquele início, como lembrou o professor Nilo Resende Viana Lima, iniciamos reuniões periódicas com alunos de graduação e iniciação científica e o nosso objetivo era nos tornarmos capazes de ler criticamente trabalhos científicos internacionais sobre fisiologia do exercício, o que já seria uma grande conquista, considerando nossa juventude e inexperiência acadêmica. Observando apenas os artigos publicados mencionados na página do LAFISE (https://lafise-ufmg.com/) constatamos que este objetivo foi amplamente ultrapassado pelos novos professores e pesquisadores que nos substituíram, que hoje contribuem significativamente para a construção da ciência no campo internacional da fisiologia do exercício.

No final da década de 70, Nilo e eu começamos a participar da Fundação Centro de Estudos do Trabalho, uma entidade de orientação democrática, que se opunha à ditadura e que procurava desenvolver a consciência dos trabalhadores sobre suas condições de vida, entre elas a sua saúde (por exemplo, ver acima a capa de um dos cadernos do CET, sobre a Saúde dos Trabalhadores). Com esta perspectiva, iniciamos um projeto de extensão universitária que procurou avaliar as condições de saúde de centenas de trabalhadores da UFMG e posteriormente na siderúrgica Usiminas (acima a capa do folheto “Conheça seu corpo no Lafise”). Os resultados deste projeto indicaram ações para diminuir a obesidade, o sedentarismo e o tabagismo na população examinada.




Nossa primeira Expedição

Incursões de cientistas em situações de campo podem ser úteis para levarem seus conhecimentos àquela determinada situação, mas também podem provocar reflexões e novas perguntas científicas.

No início da década de 80, participamos Nilo e eu, de outros estudos sobre condições de trabalho. A primeira desatas experiências, profundamente marcante para mim, foi a colaboração que fizemos com o Médico do Trabalho Hudson Araújo do Couto, nas medidas metabólicas realizadas nas profundezas da Mina de Morro Velho, onde observamos pessoalmente os mineiros trabalhando a cerca de dois mil metros de profundidade em temperaturas na rocha próximas a 43o C. Esta experiência viria a influenciar nossa intenção de estudarmos a termorregulação humana em ambientes quentes.

Na mesma época, Emerson realizava sua pós-graduação na Flórida, nos Estados Unidos, de onde retornou com experiência em estudos sobre a fisiologia do exercício em ambientes frios em câmaras ambientais. Destas duas influências, surgiu a linha de pesquisa em termorregulação humana no calor, inicialmente voltada para a questão da reidratação e desempenho.

Ao longo dos anos seguintes, esta linha de estudos abordou experimentalmente algumas questões importantes sobre a termorregulação humana durante o exercício: em indivíduos hipertensos com ingestão de água no calor; em mulheres na menopausa; medindo o estresse psicológico no calor; em indivíduos com diabetes; no processo de envelhecimento; com aclimatação ao calor; no calor e medindo as diferenças entre homens e mulheres; com ingestão de cafeína; com ingestão de carboidratos e eletrólitos; com e sem a cabeça raspada sob o sol; na neuropatia autonômica da neurofibromatose; e tantas outras.

Em paralelo às pesquisas sobre termorregulação, Nilo convenceu-nos de que seria fundamental o desenvolvimento de linhas de estudo sobre a fisiologia do exercício utilizando-se animais de laboratório (ratos), modelo experimental com o qual se habilitara no mestrado e doutorado no Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. Inicialmente voltada para bloqueadores e estimulantes do sistema nervoso central durante o exercício em esteira rolante induzido por estímulos elétricos, esta linha de pesquisa com o modelo animal passou a integrar os estudos de termorregulação e fadiga durante o exercício.

O estudo com animais de laboratório, entre outros resultados, permitiu-nos propor um modelo experimental mais natural para a compreensão da fadiga durante o exercício, que poderia evitar que os animais fossem forçados a se exercitar apenas quando estimulados com choques elétricos. Assim, introduzirmos o exercício voluntário motivado pelo desejo de obter alimentos, ou seja, o animal deve girar uma roda para percorrer a distância determinada pelos cientistas para receber uma porção do seu alimento.

No final da década de 90, o conjunto de resultados experimentais com seres humanos e animais de laboratório era suficiente para a elaboração de um novo modelo de fadiga durante o exercício, que foi denominado de modelo integrado, ou seja, um mecanismo neurológico que teria evoluído para decidir quando e como os animais realizam atividades físicas a partir de indicadores neurológicos centrais e periféricos.

Um dos componentes do modelo integrado de fadiga é a temperatura central, em especial a temperatura cerebral, que é dependente do estado de hidratação corporal, que pode variar muito em função perda hídrica causada pelo suor, o qual deve ser produzido em quantidades suficientes para ser evaporado e retirar calor do corpo durante o exercício. Ao estudarmos a fadiga e o exercício em ambientes quentes, observamos que a sudorese de seres humanos apresentava uma distribuição corporal específica, com taxas maiores na testa e no dorso das mãos, o que nos levou a procurar explicações evolutivas para este achado.

Foi então que nos deparamos com a grande capacidade termorregulatória humana para realizar atividades físicas em ambientes quentes e secos, como a Savana e o nosso Cerrado. Esta observação nos levou a buscar conhecer alguns aspectos da evolução humana como um todo, até chegarmos na hipótese do resfriamento seletivo cerebral.




O que nos faz humanos?


Algumas ideias fundamentais que reunimos sobre as relações entre a termorregulação e a evolução humana são apresentadas de forma resumida, a seguir.

À medida que ocorreu o resfriamento da Terra, houve redução da floresta tropical úmida em algumas regiões do planeta, propiciando o aparecimento de florestas secas e savanas. Na África, há cerca de 6 milhões de anos, este novo nicho ecológico atraiu animais que foram submetidos à seleção natural para sobreviverem naqueles ambientes quentes e secos.

Nos ambientes quentes e úmidos, os primatas de grande porte já vinham apresentando redução dos pelos corporais para permitir a maior troca de calor entre a pele e o ambiente. Os pelos longos nos primatas possuem também a função de permitir os filhotes se agarrarem à mãe enquanto ela caminha. Assim, a pressão evolutiva para a redução dos pelos por causa do calor acabou por selecionar também animais capazes de maior utilização dos braços para carregar os filhotes. Esta necessidade de carregar os filhotes, associada aos espaços mais abertos das savanas, acabou por selecionar animais capazes de caminhar na postura bípede, que é mais eficiente para longas distâncias, em termos energéticos, do que a postura quadrúpede.

Em paralelo à evolução da postura bípede, ocorreu a mudança no predomínio das glândulas sudoríparas, que passaram de apócrinas (secreção espessa e contendo proteínas) para écrinas (solução aquosa, contendo cloreto de sódio), que aumentaram a capacidade de evaporação do suor, resultando em maior eficiência termorregulatório nos ambientes quentes e secos.

A partir de um precursor comum, neste ponto da evolução, nos separamos dos chimpanzés e a linhagem homo se caracterizou por animais bípedes e progressivamente mais adaptados às corridas de longa distância. Em paralelo, ocorreu a seleção de espécies cada vez mais organizadas em grupos maiores de indivíduos intensamente cooperativos entre si, o que necessitou de cérebros progressivamente maiores para lidarmos com os desafios sociais.

O cérebro maior foi selecionado pelas vantagens da cooperação social na luta pela sobrevivência, incluindo um tipo de caçada a animais de grande porte em ambientes quentes e secos, chamada caçada por exaustão, na qual se obriga a presa a correr durante horas seguida sob o sol, fazendo-a entrar em hipertermia e fadiga, tornando-se alvos fáceis então.

No entanto, um cérebro maior associado a exercício e calor, significa também o risco de aumento excessivo da temperatura cerebral nos seres humanos, levando-nos à hipótese de que o Homo sapiens teria desenvolvido um sistema de resfriamento cerebral seletivo. Este sistema utilizaria a proteção do cabelo encaracolado na cabeça, para reduzir parcialmente o ganho de calor direto proveniente da radiação solar, associada à grande capacidade de sudorese na testa para evaporar suor e retirar calor da pele. Nesta pele resfriada haveria diminuição da temperatura do sangue venoso, que circularia das veias superficiais (subcutâneas) para a veias profundas (intracerebrais), ligadas por meio de comunicações através dos ossos cranianos, as veias emissárias. O resultado poderia ser a capacidade de suportar um pouco mais de calor e/ou exercício num ambiente quente sem hiper aquecer o cérebro, o que seria suficiente para uma vantagem evolutiva para obter mais proteína alimentar durante a caçada por exaustão.

Assim, nossa espécie se espalhou pelo planeta, selecionando modificações corporais que melhor se ajustassem aos novos limites climáticos durante as migrações, como, por exemplo, a cor da pele.

Embora sejamos apenas uma espécie biológica, cuja pele se tornou mais pigmentada para proteger o ácido fólico (essencial à reprodução humana), ou menos pigmentada para permitir a síntese de vitamina D, a história nos levou a adotar posturas racistas. Assim, não há raças humanas, mas há racismo e ele causa grande sofrimento e desigualdade, além de ser usado para sustentar a exploração capitalista.


Expedições do LAFISE

Em paralelo ao desenvolvimento do modelo evolutivo da termorregulação e dos mecanismos da fadiga, professores e estudantes de graduação e pós graduação do LAFISE participaram de diversas “expedições” científicas, para as quais levávamos nossa experiência do laboratório e tentávamos auxiliar a solução de determinados desafios tecnológicos.

Depois das profundezas da Mina de Morro Velho, estudamos as condições de trabalho dos operários na siderurgia, propondo ao final um protocolo de prevenção da hipertermia e mortes pelo calor, adotado por 54 siderúrgicas brasileiras.

Participamos do esclarecimento de dezenas de mortes ocorridas do Rio de Janeiro durante a onda de calor do El Niño de 1998, recebendo grande cobertura da imprensa (inclusive no Fantástico da Rede Globo), registrando pela primeira vez, de forma oficial, a existência de mortes causadas pelo calor no Brasil.

Avaliamos eletricitários trabalhando na manutenção de linhas de transmissão com roupas especiais e sob grande estresse térmico, assim como as condições de hipertermia durante os Jogos da Juventude em Goiânia.

Finalmente, participamos da grande expedição multidisciplinar que desceu o Rio das Velhas no Projeto Manuelzão, uma aventura que contribuiu para o conhecimento das condições de exercício no Cerrado e que trouxe novas perspectivas científicas para as participantes Ivana Fonseca, Luciana Madeira e Patrícia Campos.

E agora, o LAFISE se deslocou do Cerrado para participar de pesquisas na Antártica, para onde alguns cientistas da fisiologia do exercício estão levando nossas ferramentas de laboratório e as questões que tem ocupado nossa atenção: como se comportaria a termorregulação humana no ambiente extremo da Antártica? Quais seriam os efeitos das roupas especiais sobre a termorregulação durante o exercício no frio intenso? O que aconteceria com a fadiga naquelas condições? Quais seriam as adaptações a longo prazo das atividades realizadas em condições extremas na Antártica?

Nossa espécie evoluiu nos ambientes quentes e secos dos Cerrado e da Savana, onde a estabilidade térmica relativa nos permite permanecer sem proteção de roupas e abrigos contra altas ou baixas temperaturas, mas nosso grande cérebro, desenvolvido para lidar com a cooperação social em bandos, deu origem a culturas e depois a civilizações que se expandiram para todas as partes do planeta, onde criamos tecnologia capaz de nos proteger fisicamente em ambientes extremos. A Antártica é último território terrestre onde somos capazes de sobreviver com recursos tecnológicos especiais.

As roupas e equipamentos que nos protegem do frio na Antártica criam um micro ambiente no qual permanecemos aquecidos e podemos manter nossas funções vitais em repouso. No entanto, quando somos obrigados a nos exercitar na Antártica, a dissipação do calor produzido pelo metabolismo muscular pode se tornar um problema, dependendo da sua taxa de produção, levando ao aumento da temperatura cerebral e à fadiga.

Um dos estudos realizados pela equipe do LAFISE na Antártica foi justamente a observação da temperatura interna durante o trabalho cotidiano de voluntários na Antártica. Os resultados confirmam que o microambiente produzido pelas roupas se constitui num ambiente quente e úmido. Ao contrário da Savana e do Cerrado, onde evoluímos para lidar com o ambiente quente e seco, temos dificuldade de retirar calor do corpo dentro destas roupas especiais, que se tornam um microclima quente e úmido. Portando, o estudo coordenado pelo Ygor Martins, sob a orientação das professoras Danusa Dias Soares e Rosa Maria Esteves Arantes, observou que os voluntários que realizaram atividades em campo durante 32 dias na Antártica apresentaram maior eficiência termorregulatória no retorno ao laboratório, indicando uma aclimatação ao calor.

Estes dados nos estimulam a fazer algumas perguntas para o futuro: as pessoas que vão usar estas roupas isolantes poderiam suportar melhor suas atividades físicas na Antártica se fossem previamente aclimatadas ao calor? Qual o impacto da temperatura cerebral aumentada durante as atividades em campo sobre a capacidade cognitiva dos voluntários? Qual a diferença entre homens e mulheres nas respostas termorregulatórias durante o período de atividades na Antártica? Há diferenças genéticas nas respostas termorregulatórias durante o uso de roupas especiais?

Em meio à pandemia de COVID-19 é impossível não conjecturarmos se haveria alguma questão científica na fisiologia do exercício, na aclimatação, ou na produção de proteínas protetoras HSP, ou na tolerância ao frio, por exemplo, que poderia auxiliar a ciência a enfrentar ou controlar a pandemia de Coronavirus que tanto sofrimento traz à humanidade neste momento. Podemos contribuir de alguma forma para este esforço coletivo de enfrentamento da pandemia?


Finalmente, é fundamental lembrar que a ciência somente é possível com recursos financeiros e apoios institucionais. Neste momento, em que até o ministro da Ciência e Tecnologia reclama do corte de verbas do governo ao qual ele pertence, é preciso alertar a sociedade para a destruição da capacidade científica brasileira que vem acontecendo no governo Bolsonaro.




Em conclusão, o passo dado pela equipe de cientistas do LAFISE, a expedição do Cerrado para a Antártica, é um pequeno passo para a Fisiologia do Exercício, mas esperamos que venha a ser um grande passo para a ciência quando a experiência em campo for capaz de formular novas hipóteses a serem testadas experimentalmente no último continente alcançado pela humanidade.



Agradeço ao amigo Nilo Resende Viana Lima e às amigas Ana Carolina Vimieiro Gomes e Michele Macedo Soares pelas leituras atentas e sugestões.

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