Radicalizar a igualdade

 



Para Anna Bárbara[1]



Em tempos difíceis, temos que aprofundar, radicalizar nossos objetivos, pois a moderação anterior pode ser parte do caminho que nos trouxe até a crise. Se acreditamos que nossos problemas decorrem da forma injusta como organizamos o mundo, e estamos convencidos de que é necessária a igualdade de direitos entre as pessoas, defender os direitos das mulheres deve ser nossa prioridade, a pauta primordial: combater a mais antiga e entranhada das dominações, o machismo.

Há milhares de anos, antes mesmo da invenção da propriedade privada, da família e do Estado, os homens já mantinham (pela força física) uma divisão de tarefas nas quais a parte mais pesada sempre coube às mulheres. O trabalho das mulheres, desde as caçadoras coletoras até nossas companheiras atuais, com sua tripla jornada, é muito mais prolongado, desgastante para a saúde, e com maior dispêndio de energia do que o trabalho dos homens, incluindo a fundamental gestação das novas gerações, apesar de ser desprezado, desvalorizado e mal remunerado.

Independentemente do racismo, porque a dominação masculina está presente em todas as “raças”, os comportamentos masculinos podem ser divididos em categorias cujos limites se superpõem eventualmente. Há, num extremo, os homens que consideram natural a desigualdade entre os seres humanos e exercem seus plenos poderes sobre as mulheres, desfrutando de seus privilégios sem qualquer tipo de constrangimento, educados que foram numa sociedade que considera as mulheres seres inferiores[2].

Na outra ponta do espectro, temos os homens que reconhecem a injustiça social em que vivemos e querem mudar nossas relações, buscando a igualdade plena entre todos os seres humanos. Alguns destes homens acreditam que o fim do capitalismo teria como consequência imediata a igualdade entre homens e mulheres. Assim, trabalham em prol do socialismo e consideram as questões feministas secundárias ou mesmo um desvio da energia necessária para a transformação política e social.

Outros, entre eles eu, reconhecemos que as tentativas socialistas existentes ou passadas (e sociais democratas) não foram (e provavelmente não seriam) capazes de eliminar o machismo. Por isso, percebemos que acabar com a desigualdade entre homens e mulheres deve anteceder o socialismo. Nesse sentido, procuramos nos reeducar, desconstruindo cotidianamente nosso próprio machismo estrutural e defendendo as pautas feministas.

Entre estas polaridades, há variadas combinações de posturas masculinas, dependendo da história, privilégios e personalidade de cada um, que se caracterizam por desprezo jocoso (piadas desqualificando as feministas), ou um silêncio constrangido (em público) diante do tema espinhoso do feminismo, porque ele mexe nos direitos adquiridos (e não naturais) dos homens, ou em manifestações de desacordo explícito reservadas para os momentos íntimos, geralmente com suas companheiras submissas, elas também educadas no mito das diferenças inatas (ou por direito divino) entre os papéis de homens e mulheres.

Os homens que silenciam diante do machismo, numa sociedade em que os dados objetivos (por exemplo, salários e violência) indicam que existe a discriminação de gênero, ou que não percebem o machismo (ou não o levam em conta, ou não lhe dão muita importância), apesar dele estar presente em todas as relações humanas, são pessoas que estão bem acomodadas em seus privilégios.

Temos sido tão bem nutridos na naturalidade da dominação homem/mulher que geralmente as dificuldades femininas não chamam a atenção dos homens o suficiente para entrarem no rol das nossas preocupações. Ao contrário de nós, as mulheres percebem o machismo diariamente, sempre. Quem bate, esquece. Quem apanha, não.

Portanto, penso que os homens que desejam mudar esta injustiça, que desejam radicalmente a igualdade, precisam compreender que o feminismo deve preceder o socialismo. Não é possível ser socialista sem ser feminista, porque o socialismo começa pela abolição da primeira divisão de trabalho na humanidade (e de classes, portanto) que se deu e ainda se dá entre homens e mulheres.

Por outro lado, sabendo que esta divisão é tão antiga e permeia todas as principais culturas humanas até agora, precisamos suspeitar que o machismo talvez tenha se beneficiado de uma parte constitucional de nossa biologia, que favoreceria esta construção cultural que se perpetua através dos tempos. As poucas sociedades matriarcais registradas parecem-me justamente formarem as exceções que fazem parte e confirmam as regras.

Então, se houver algo em nossa natureza biológica que favoreça o machismo, mais profunda ainda deve ser a nossa luta para superarmos esta herança em busca da igualdade humana. Precisamos compreender melhor como funcionam estas características genéticas em interação com as construções culturais para podermos transformá-las, se o desejarmos politicamente.

A transição entre o Homo umbilicus, que se sente o centro do universo, até o homem socializado, que descobre que sua identidade somente se constrói nos outros, no coletivo, assim como sua felicidade (e infelicidade), é uma jornada longa e trabalhosa. É possível que apenas uma parte de nós, especialmente homens, complete essa travessia lá pelos 30 anos de idade. Talvez muitos homens permaneçam agarrados às fases primitivas do desenvolvimento neurológico comportamental, reclamando violentamente nossos direitos naturais sobre o corpo das mulheres.

Talvez aquela perninha faltante do cromossomo Y seja o locus específico da habilidade neurológico-comportamental de transitar do egoísmo para o coletivo, do Édipo para o Ubuntu. Precisamos compreender melhor esta questão ontológica para que nossa luta cultural e política feminista consiga construir uma nova sociedade de mutantes, formada por pessoas profunda e naturalmente apegadas à igualdade entre os seres humanos.

Então, como fazer?

Outro dia, num grupo de amigas e amigos, depois de apresentar sua dissertação de mestrado[3] sobre as dificuldades das mulheres para enfrentarem o machismo estrutural nas empresas modernas, Paula Guedes disse que os homens precisam se unir para discutir o machismo. Argumentei que isto seria muito bom se viesse a acontecer, mas esperar que os homens em geral se unam para promover o feminismo parece-me pouco realista, porque ninguém advoga contra os próprios privilégios.

Como todas as conquistas libertárias, que foram alcançadas pela luta e não pela concessão dos opressores, as mulheres e os homens que desejam a igualdade de direitos terão que lutar para acabar com os privilégios masculinos.

No entanto, mesmo aqueles homens que desejam apoiar as pautas feministas podem se sentir inibidos, como já ocorreu comigo, porque somos advertidos de que não entendemos os problemas das mulheres o suficiente para nos manifestarmos e que devemos deixar este lugar de fala para elas.

Concordo que nós homens não devemos falar pelas mulheres e nem ocupar seu lugar no desmonte do machismo, mas podemos falar em nosso nome. E diremos que somos homens que querem acabar com todas as formas de discriminação contra as mulheres e que a luta feminista é a mais libertadora da humanidade.

LOR

Obrigado Thalma, pelas leituras e sugestões.




[1] Anna Bárbara de Freitas Carneiro Proietti, médica, cientista pesquisadora em hematologia e virologia e psicanalista, presidiu a Hemominas por doze anos.


[2] Ver o documentário “A máscara na qual vivemos”: https://www.youtube.com/watch?v=MwxCYC1CmvE


[3] Paula Guedes de Mendonça, “A dominação masculina nas organizações: efeitos e estratégias nas carreiras profissionais”, Mestrado Profissionalizante em Administração, Fundação Dom Cabral, Belo Horizonte, 2018.

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