A sabedoria ao alcance de todos

 



Meu amigo, o médico e professor Ramon Cosenza, chamou a atenção para a foto acima, que ilustra um ensaio na AEON sobre a ciência da sabedoria, publicado em 2020 (ver aqui: https://aeon.co/essays/how-psychological-scientists-found-the-empirical-path-to-wisdom ). Ela foi realizada num dos vários botequins de Lambari, a cidade onde meus pais criaram meus irmãos, irmãs e a mim, no Sul de Minas.

O ensaio é muito interessante e mostra os primeiros passos de um grupo internacional de psicólogos que tentam definir e medir o que vem a ser a tal sabedoria. Por enquanto, definiram a sabedoria como um processo mental que utiliza parâmetros morais para tomada de decisão numa situação que demanda a integração de conhecimentos complexos.

Por exemplo, o que seria mais sábio, desmatar uma floresta e plantar soja para alimentar porcos (problema complexo) para saciar a fome das pessoas por carne (motivo moral), ou preservar a biodiversidade e desenvolver agricultura sustentável (alternativa complexa) para alimentar as pessoas no longo prazo (motivo moral conflitante)?

Os psicólogos cientistas sugerem também que pode ser um mito a ideia de que sabedoria dependeria do envelhecimento. Aliás, numa passagem do Rei Lear, de Shakespeare, já dizia o bobo da corte ao rei decadente: “Que lástima você ter envelhecido antes de se tornar sábio”.

No entanto, apesar do autor do texto, Igor Grossmann, um professor de psicologia que vive em Toronto, considerar um mito a história do velho sábio, parece que o ilustrador não concordou com isso e escolheu para abrir o texto a imagem comprada do fotógrafo Steve McCurry e realizada em Lambari: dois homens idosos conversando compenetrados, apoiados num balcão enquanto tomam café.

Podemos ver que se trata de um bar numa das periferias do mundo também exploradas em língua portuguesa, o que podemos deduzir pela propaganda da Coca-Cola num cartaz onde se lê: PARE AQUI E BEBA POR AÍ.

É um lugar empobrecido, pela ordem natural da divisão da crise entre as classes econômicas, e desgastado pelo tempo, rearranjado numa adaptação enjambrada de espaços, da qual se vê ainda a cicatriz aberta de uma parede derrubada para ampliar a mesa de sinuca.

Ao redor dela, dois homens conversam com uma mulher sentada, que usa sapatos de salto alto e fino, calças jeans e blusa de frio, vestimenta totalmente oposta à da outra mulher no cenário, uma figura estampada no cartaz publicitário. Ela suga sensualmente uma lata de Coca-Cola, aparentemente tão saborosa que o prazer leva à ereção dos seus mamilos, destacados pela habilidade do artista gráfico com sua caneta no Photoshop.

A imagem deve estar exposta por ali há muito tempo, pois ninguém olha diretamente para ela, mas sua mensagem é permanente nos corações e mentes, gerando muita sede e desejo por refrigerantes.

Outro homem grisalho, branco como todas as demais pessoas no ambiente, sentado abaixo do cartaz com a mulher quase pelada, sorve um cafezinho, enquanto parece observar os jogadores de sinuca em conversação com a mulher vestida. Seu perfil romano sugere que seja descendente de italianos, assim como também poderiam ser de origens ibéricas as demais pessoas (até mesmo a sedenta do cartaz), uma vez que não se vê pessoas negras no local. Estariam elas por trás do balcão ou trabalhando no quintal? Seriam bem vindas para um cafezinho?

Em primeiro plano, os dois personagens principais, dois homens idosos, ambos de chapéus de feltro em tons marrons, que vestem camisas de colarinho e calça social com cinto de couro, roupas simples, mas bem cuidadas, bigodes e cabelos aparados, formando um perfil de homens de hábitos conservadores. Talvez pequenos proprietários de terras, sitiantes, vivendo da venda de leite, frutas, verduras, carne de porco ou café.

Talvez estivessem retornando de um culto religioso, provavelmente a missa dominical, cumprindo seu dever de católicos tradicionais, porque não imagino que sejam evangélicos, uma vez que o ambiente de jogo e supostas bebidas alcoólicas, ainda que não evidentes, seria inadequado ao radicalismo puritano de alguns grupos protestantes.

O homem menor, de pulôver verde, diz algo em voz baixa, de forma cautelosa e firme, sem olhar diretamente para os olhos do outro, muito mais alto e forte, que parece interromper seu gesto de depor a xícara sobre o balcão, como se houvesse necessidade de parar para refletir sobre aquilo que ouvia. Então, permanece olhando o resto de açúcar no fundo da xícara, enquanto pensa sem pressa para responder.

É possível que o assunto tratado ali sejam coisas importantes para serem conversadas desta forma por dois homens respeitados, talvez as promessas do novo candidato presidencial, que garantia acabar com as restrições ao desmatamento na região, o que permitiria aos dois compadres avançarem na extração de madeira em suas propriedades, sem medo de multas.

Talvez seja outro assunto sério, a falta de vergonha das mulheres que querem mandar nos maridos, que acham que podem cuidar da casa sozinhas, que pensam que sabem o que é melhor para a educação dos filhos, cheias de liberdade e sem juízo. Antigamente elas sabiam o seu lugar, diz o homem pequeno com severidade.

Não importa. Quem escolheu esta foto para ilustrar o artigo científico sobre a sabedoria deixou de lado todo palavreado filosófico e nos apresentou sumariamente sua visão simplificada do que vem a ser a sabedoria ao alcance de todos: dois homens brancos, idosos, conservadores e proprietários de terra decidindo o que é melhor para todos os demais, ainda que suas decisões possam modificar o clima do planeta, obrigando-nos a cada vez mais beber refrigerantes por causa da escassez de água potável.

Ainda bem que teremos muito prazer em fazer isso.









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