Filosofia do palavrão 2
Há um ano escrevi sobre o uso do palavrão nas entrevistas e publicações do astrólogo Olavo de Carvalho, o guru da família Bolsonaro (VER AQUI ), mas não imaginava que o palavrão assumisse as proporções públicas desta semana, quando a gravação da famosa reunião denunciada por Sérgio Moro começou a ser divulgada amplamente.
As ideias que apresentei há um ano ganharam força nesta semana e vale a pena reler o texto, com algumas atualizações.
Fui conhecer um pouco da obra daquele cidadão norte-americano que se diz brasileiro e filósofo, porque não quero ser um idiota, uma das palavras agressivas que o tal escritor usa frequentemente, inclusive no título de um de seus livros.
O que vi nos seus textos e vídeos foram críticas à esquerda, à globalização, à liberdade sexual e a outros comportamentos modernos, que o autor denuncia como parte de uma conspiração marxista e comunista orquestrada pela elite global financeira e intelectual [1]. Não é a primeira vez na história que este tipo de fantasia paranoide serve de propaganda populista, como durante o avanço nazista na Segunda Guerra Mundial, e este argumento absurdo já foi várias vezes desmistificado.
O próprio escritor confessa não ter nenhuma proposta para ao futuro, nenhum modelo de sociedade, mas que gostaria de retomar os valores de duzentos anos atrás (ver entrevista com Pedro Bial em maio de 2019).
É fácil sermos levados a concordar com ele de que há diversos problemas importantes na política, no judiciário, nas universidades, nas Forças Armadas e até mesmo na democracia. O difícil é sermos capazes de propor soluções para que estes problemas sejam diminuídos ou sanados. Isto, o autonomeado professor diz que não sabe.
O que chama a atenção, no entanto, é a forma como ele expõe seus pensamentos, os quais são veiculados com agressividade e muitos palavrões, o que às vezes nos faz duvidar se ele estaria sóbrio durante alguns vídeos.
Qualquer que seja a causa (psicológica, neurológica, etílica) do comportamento verbal agressivo do ídolo do presidente eleito, acho que vale a pena compreender o significado dos palavrões que ele usa (assim como o nosso impresidente).
É bom lembrar que os palavrões ocorrem a todos nós em situações de estresse, nas quais abrimos mão da racionalidade (controlada por áreas cerebrais superiores que amadurecem a partir da infância até a adolescência) e substituímos a lógica e o pensamento racional por expressões verbais mais primitivas (originadas em outras áreas cerebrais que estão relacionadas com a raiva, o medo, o desejo sexual, a necessidade de evacuar ou urinar, etc.).
Assim, quando pressionados emocionalmente, em determinadas circunstâncias retomamos os comportamentos primitivos para tentarmos expressar a supremacia física dos nossos antepassados primatas.
Ou seja, falar palavrões é um comportamento mais primitivo (e rápido) do que encontrar a palavra certa para enfrentar uma determinada situação. Por exemplo, “Seu filho da puta! ” costuma vir a substituir “Você me ultrapassou em local proibido e me fechou abruptamente, causando-me um susto que me disparou o coração e trouxe grande medo de eu ser abalroado, de perder o controle da direção e sofrer ferimentos com consequências fatais! ”.
Às vezes não dá tempo de dizer exatamente o que estamos pensando, claro.
Além disso, o uso do palavrão pode se tornar um hábito linguístico como parte dos símbolos de status social em comunidades com menos recursos no cardápio de palavras, com menor escolaridade e maior violência intrínseca nas relações humanas. Por exemplo, o adolescente que abusa dos palavrões pode estar em busca de reconhecimento de sua masculinidade, ou o prisioneiro que quer se mostrar durão para os companheiros de cela, ou o político que quer parecer sincero e “autêntico” contra “o sistema”.
Com estas perspectivas, vamos examinar alguns dos principais palavrões expelidos pelo auto-filósofo, que justificou seu emprego em público porque ele os usa nas conversas habituais em qualquer lugar com qualquer pessoa. Ou seja, sua maturidade cerebral ainda não chegou na fase de distinção entre o que é público e o que é privado. Portanto, sua linguagem chula seria própria da sua “origem popular e humilde”, explica-nos o pensador com um sorriso populista.
Porra
Uma das preferidas do guru é a palavra “porra” para demonstrar sua superioridade de gênero, lembrando-nos das regras machistas vigentes no mundo em que vivemos, no qual basta nascer com órgãos genitais que produzem a tal porra para se receber privilégios congênitos. Como se fosse o chicote pendurado como advertência permanente nos locais onde os escravos trabalhavam.
Exemplos, “Bota cada filho seu num ministério, porra!”[2]. Também pode ser usada para reclamar de algo que desconhecemos: “Não consigo entender essa porra de meio ambiente! ”.
Filho da puta
O seu uso supostamente indica que o guru pensa que ser prostituta é uma questão de mau caráter hereditário, pois o alvo do xingamento é o filho. Ou seja, o cara é ruim porque herdou da mãe a ruindade. A ciência já demonstrou que determinados comportamentos socialmente errados podem ter um componente genético (ver, por exemplo, as suspeitas de corrupção que recaem sobre os parentes dos assessores e do próprio filho senador do presidente). No entanto, quem usa esta expressão habitualmente parece ignorar que a prostituição não é uma escolha motivada por luxúria ou defeitos de caráter, mas sim por situações de vulnerabilidade social, como pobreza, abandono, abusos e dependência de drogas, por exemplo.
Interessante lembrar que ele não usa “filho do puto”, indicando que a atividade de prostituição é algo tão inferior que não poderia ser cometida por um homem macho, porra!
Cu
Esta palavra parece exercer um fascínio intenso sobre Olavo de Carvalho e seus discípulos e é frequentemente usada para representar tanto algo ruim (“O nordeste é o cu do mundo! ”), quanto o bem aparentemente mais precioso que um homem pode ter (“Deu o cu, já era! ”).
Quando o palavrão vem a forma de “Vai tomar no cu! “, significa “vai ter prazer anal, seu viado!”, o que não seria um xingamento em si, não fosse o fato de que ser homossexual é a pior coisa que pode acontecer a alguém na sociedade homofóbica que o escritor defende.
Merda
Não sei bem se para o astrólogo braso-americano a palavra tem conotações pejorativas porque a “merda” é expelida pelo horrível cu (ver acima), ou se porque se trata de uma repulsa primitiva a um excremento natural do qual nós animais procuramos nos afastar instintivamente para evitar doenças.
O aprendizado de como lidar com as próprias fezes se dá no começo da infância e é fundamental para nossa inserção social. Com o tempo, amadurecemos e perdemos o medo das fezes e as tratamos com os devidos cuidados de higiene, mas sem pânico.
Usar a palavra “merda” com sentido emocionalmente carregado de simbolismo e agressivo num contexto adulto é uma forma de regredir ao estágio de desenvolvimento intelectual no qual ainda vivíamos o horror de perceber que algo quente nos escorria involuntariamente pelas pernas.
Dizer “Seu general de merda!” é encerrar o diálogo racional e dar um passo em direção ao conflito físico primário e primata.
Vai te foder
Quando o guru nos manda realizar esta ação, fico na dúvida se ele está nos dizendo para nos masturbarmos (o que não é um problema em si), ou se é para fazermos sexo com alguém assumindo a posição passiva (o que também não é um problema em si). No entanto, como o xingamento é uma agressão verbal, significa que o ato que ele deseja para seu interlocutor é que ele sofra, que seja submetido a uma violência por meio do sexo, ou seja, que a pessoa objeto da injúria seja estuprada.
Mais uma vez, o mestre do ministro da educação, revela seu pavor da relação anal e da homossexualidade, mas acrescenta agora uma incitação ao estupro como arma de dominação.
Viado
Geralmente é usado pelo auto imigrado escritor com o sentido de humilhar alguém por sua preferência sexual, seja ela real ou não, porque sua visão de sociedade não suporta sequer a existência da homossexualidade, a qual se torna para ele sinônimo de máxima degeneração. Gritar “Seu viado!” não requer explicação ou adjetivo: é a homofobia em estado puro.
Caralho
Usado por ele com o mesmo sentido de afirmação de potência e superioridade da palavra “porra”, embora o uso de “caralho” pareça significar um grau mais alto de violência implícita, uma espécie de ameaça subliminar de estupro. Por exemplo, “Tira esse coronel do ministério, caralho!”.
Existem outros exemplos de palavrões usados pelo guru dos bolsonaristas, mas acho que já deu para entender que todos eles, sem exceção, expressam preconceitos, imaturidade, pouca cultura e primitivismo por parte de quem os usa.
Venho me educando para encontrar a palavra certa para descrever meu verdadeiro pensamento diante de certas situações, sem palavrões.
Assim, à luz dos pensamentos deste intelectual ressentido e medíocre, cujos argumentos se nivelam aos palavrões que ele usa abundantemente para agredir, humilhar, ofender e evitar assim a racionalidade que contraria suas teses conspiratórias e retrógradas, é que refaço a releitura de uma das falas na tal reunião ministerial:
Alguém disse:
- “Não vou esperar f. minha família!”
Mas o que esta pessoa poderia estar querendo dizer era:
- “Não posso esperar que a Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro descubra a participação da minha família na corrupção da Assembleia Estadual do Rio, e as ligações com as milícias, com o crime organizado e o assassinato de Marielle Franco. Isto poderia nos levar a um processo e à condenação na Justiça. Para evitar essa tragédia familiar, conto com o apoio dos militares para que eu possa interferir na Polícia Federal e silenciar as investigações.”
É... Às vezes não dá tempo de dizer exatamente o que estamos pensando.
Agradeço as sugestões de Thalma e Ana para este texto.
Com estas perspectivas, vamos examinar alguns dos principais palavrões expelidos pelo auto-filósofo, que justificou seu emprego em público porque ele os usa nas conversas habituais em qualquer lugar com qualquer pessoa. Ou seja, sua maturidade cerebral ainda não chegou na fase de distinção entre o que é público e o que é privado. Portanto, sua linguagem chula seria própria da sua “origem popular e humilde”, explica-nos o pensador com um sorriso populista.
Porra
Uma das preferidas do guru é a palavra “porra” para demonstrar sua superioridade de gênero, lembrando-nos das regras machistas vigentes no mundo em que vivemos, no qual basta nascer com órgãos genitais que produzem a tal porra para se receber privilégios congênitos. Como se fosse o chicote pendurado como advertência permanente nos locais onde os escravos trabalhavam.
Exemplos, “Bota cada filho seu num ministério, porra!”[2]. Também pode ser usada para reclamar de algo que desconhecemos: “Não consigo entender essa porra de meio ambiente! ”.
Filho da puta
O seu uso supostamente indica que o guru pensa que ser prostituta é uma questão de mau caráter hereditário, pois o alvo do xingamento é o filho. Ou seja, o cara é ruim porque herdou da mãe a ruindade. A ciência já demonstrou que determinados comportamentos socialmente errados podem ter um componente genético (ver, por exemplo, as suspeitas de corrupção que recaem sobre os parentes dos assessores e do próprio filho senador do presidente). No entanto, quem usa esta expressão habitualmente parece ignorar que a prostituição não é uma escolha motivada por luxúria ou defeitos de caráter, mas sim por situações de vulnerabilidade social, como pobreza, abandono, abusos e dependência de drogas, por exemplo.
Interessante lembrar que ele não usa “filho do puto”, indicando que a atividade de prostituição é algo tão inferior que não poderia ser cometida por um homem macho, porra!
Cu
Esta palavra parece exercer um fascínio intenso sobre Olavo de Carvalho e seus discípulos e é frequentemente usada para representar tanto algo ruim (“O nordeste é o cu do mundo! ”), quanto o bem aparentemente mais precioso que um homem pode ter (“Deu o cu, já era! ”).
Quando o palavrão vem a forma de “Vai tomar no cu! “, significa “vai ter prazer anal, seu viado!”, o que não seria um xingamento em si, não fosse o fato de que ser homossexual é a pior coisa que pode acontecer a alguém na sociedade homofóbica que o escritor defende.
Merda
Não sei bem se para o astrólogo braso-americano a palavra tem conotações pejorativas porque a “merda” é expelida pelo horrível cu (ver acima), ou se porque se trata de uma repulsa primitiva a um excremento natural do qual nós animais procuramos nos afastar instintivamente para evitar doenças.
O aprendizado de como lidar com as próprias fezes se dá no começo da infância e é fundamental para nossa inserção social. Com o tempo, amadurecemos e perdemos o medo das fezes e as tratamos com os devidos cuidados de higiene, mas sem pânico.
Usar a palavra “merda” com sentido emocionalmente carregado de simbolismo e agressivo num contexto adulto é uma forma de regredir ao estágio de desenvolvimento intelectual no qual ainda vivíamos o horror de perceber que algo quente nos escorria involuntariamente pelas pernas.
Dizer “Seu general de merda!” é encerrar o diálogo racional e dar um passo em direção ao conflito físico primário e primata.
Vai te foder
Quando o guru nos manda realizar esta ação, fico na dúvida se ele está nos dizendo para nos masturbarmos (o que não é um problema em si), ou se é para fazermos sexo com alguém assumindo a posição passiva (o que também não é um problema em si). No entanto, como o xingamento é uma agressão verbal, significa que o ato que ele deseja para seu interlocutor é que ele sofra, que seja submetido a uma violência por meio do sexo, ou seja, que a pessoa objeto da injúria seja estuprada.
Mais uma vez, o mestre do ministro da educação, revela seu pavor da relação anal e da homossexualidade, mas acrescenta agora uma incitação ao estupro como arma de dominação.
Viado
Geralmente é usado pelo auto imigrado escritor com o sentido de humilhar alguém por sua preferência sexual, seja ela real ou não, porque sua visão de sociedade não suporta sequer a existência da homossexualidade, a qual se torna para ele sinônimo de máxima degeneração. Gritar “Seu viado!” não requer explicação ou adjetivo: é a homofobia em estado puro.
Caralho
Usado por ele com o mesmo sentido de afirmação de potência e superioridade da palavra “porra”, embora o uso de “caralho” pareça significar um grau mais alto de violência implícita, uma espécie de ameaça subliminar de estupro. Por exemplo, “Tira esse coronel do ministério, caralho!”.
Existem outros exemplos de palavrões usados pelo guru dos bolsonaristas, mas acho que já deu para entender que todos eles, sem exceção, expressam preconceitos, imaturidade, pouca cultura e primitivismo por parte de quem os usa.
Venho me educando para encontrar a palavra certa para descrever meu verdadeiro pensamento diante de certas situações, sem palavrões.
Assim, à luz dos pensamentos deste intelectual ressentido e medíocre, cujos argumentos se nivelam aos palavrões que ele usa abundantemente para agredir, humilhar, ofender e evitar assim a racionalidade que contraria suas teses conspiratórias e retrógradas, é que refaço a releitura de uma das falas na tal reunião ministerial:
Alguém disse:
- “Não vou esperar f. minha família!”
Mas o que esta pessoa poderia estar querendo dizer era:
- “Não posso esperar que a Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro descubra a participação da minha família na corrupção da Assembleia Estadual do Rio, e as ligações com as milícias, com o crime organizado e o assassinato de Marielle Franco. Isto poderia nos levar a um processo e à condenação na Justiça. Para evitar essa tragédia familiar, conto com o apoio dos militares para que eu possa interferir na Polícia Federal e silenciar as investigações.”
É... Às vezes não dá tempo de dizer exatamente o que estamos pensando.
Agradeço as sugestões de Thalma e Ana para este texto.
[1]
Ver reportagem recente na Folha de São Paulo sobre a bíblia da extrema direita,
o livro ORVIL https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/05/orvil-livro-secreto-da-ditadura-inspira-guerra-cultural-de-bolsonaro.shtml
[2]
Vários destes exemplos foram retirados de entrevistas e textos do famoso
astrólogo-guru.
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