A revolta de Adão




Adão se aproximou e disse: - Senhor, dá para voltar antes daquele lance da costela? O Senhor, apesar de onisciente, perguntou: - O que está pegando? Adão cuspiu uns caroços de melão (a maçã ainda não tinha sido provada): - Ah, é muita regrinha, muito mimimi, muita limpeza, tudo que eu gostava de fazer, agora ela chama de machismo.... Me desculpe, Senhor, mas isto aqui virou um inferno! O Senhor coçou a barba: - Tem uma saída... A gente arranja um pretexto, expulso vocês do Paraíso e lá fora você passa a mandar em tudo. Adão balançou a cabeça: - Tô nessa - prefiro ter que trabalhar do que aguentar essa mulher o dia todo! Então, o Senhor disse: - Chama a serpente.



E o plano de Deus-Adão-Serpente vinha dando certo, pelo menos até recentemente. Nós homens herdamos uma poderosa estrutura de dominação masculina desde as primeiras comunidades humanas e praticamente todas as culturas e civilizações são ou foram controladas pelos homens, desde nossa vida como caçadores coletores até as sociedades industriais[i]. A primeira desigualdade social entre seres humanos surgiu na relação pré-histórica entre o homem e a mulher e persiste mesmo nos países mais avançados economicamente.

O reinado de Adão significa, em termos concretos, maior responsabilidade e encargos físicos para a mulher na gestação e na criação das crianças e mais tarefas nos cuidados com a casa, o que se traduz em mais trabalho para as mulheres (especialmente manuais), menor remuneração pelo trabalho fora de casa e dupla jornada, o que significa participação reduzida na riqueza medida em termos econômicos. Não bastasse a cangalha doméstica, as mulheres têm menos direitos políticos e menor participação nas decisões sociais e enorme submissão aos desejos sexuais dos homens, incluindo a forma de como elas devem aparentar fisicamente. A maioria de nós, homens, é claro, desde aquela primeira reclamação de Adão, não temos achado ruim esta situação durante milênios.

No entanto, nas últimas décadas, reações femininas à dominação masculina alcançaram certo grau de sucesso em algumas partes do mundo, como o direito ao voto, o direito ao divórcio, o direito à contracepção e ao aborto, assim como a exigência legal da igualdade de salários, a punição masculina pelo abuso sexual e as condenações por feminicídio. Isto vem acontecendo desde meados do século passado, especialmente depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos (aliás, presidida por Eleonor Roosevelt, viúva do ex-presidente norte-americano na época).

Estas reações femininas, o chamado feminismo, são um conjunto de defesas dos direitos da mulher, uma bandeira ampla que abarca múltiplas questões. Desde o final da Segunda Guerra Mundial o feminismo vem conquistando mais pessoas em todo o mundo, de forma evidente nos países desenvolvidos democraticamente e mais lentamente naqueles mais pobres e mais religiosos[ii].

Este crescimento do feminismo implica no rearranjo do poder entre homens e mulheres nos cargos políticos e posições no mercado de trabalho, mas principalmente na intimidade das relações domésticas. Ali, onde Adão e Eva se encontram cara a cara no nível pessoal, familiar, sexual e simbólico da família é onde as conquistas femininas mais produzem reações negativas por parte dos homens (e também das mulheres que acreditam nos valores tradicionais dos papeis femininos como pessoas “do lar”).

Nem todos somos mulheres, nem todos somos aposentados, nem todos somos negros ou indígenas, nem todos somos ricos ou pobres, nem todos somos homo afetivos, mas praticamente todos estamos envolvidos nalguma relação homem-mulher, na intimidade ou no ambiente profissional. Por isso, as questões relativas aos costumes relacionados à convivência entre os gêneros são aquelas que mais afetam a maioria das pessoas. Daí a sua importância, desde os tempos do Paraíso, aliás, como vimos acima, foi onde começaram os problemas.

A reação masculina diante do avanço do poder feminino vem aumentando nos últimos anos. Inicialmente, os homens difundiram uma rejeição debochada ao politicamente correto, especialmente aquele relacionado com as mulheres. Muitos homens dizem que querem recuperar a “liberdade” para contar piadas sobre mulheres sem serem patrulhados por elas, a quem consideram pessoas sem humor. Por algum motivo estranho, estes homens imaginam que as vítimas deveriam rir com a sua própria humilhação.

No entanto, como a liberdade feminina é um valor cultural que se disseminou (inclusive para aumentar os lucros no mercado de consumo especializado), não fica bem aos homens combaterem frontalmente as conquistas femininas muito além das piadas sexistas. Por isso, aos poucos, cresceu o número de homens com argumentos cada vez mais fundamentados na defesa da família tradicional, nos costumes conservadores e nas religiões (todas elas com deuses criados à imagem e semelhança do homem, o masculino, não o termo genérico). Ou seja, sem explicitar a crítica direta ao feminismo, os homens podem propor a volta aos papeis tradicionais da mulher, o que é, no fundo, uma postura antifeminista.

Alimentando o exército (sem duplo sentido) de defensores da hegemonia masculina, surgiram versões modernas de ideias arcaicas dos séculos anteriores, aparentemente mais racionais e baseadas na pseudociência, que naturalizam e tentam justificar
diferenças sociais e de direitos a partir de diferenças biológicas entre homens e mulheres.

Por outro lado, há várias afinidades entre o feminismo e posições políticas da esquerda (pois o feminismo é necessariamente de esquerda no sentido libertário e democrático), como as defesas da igualdade, da fraternidade, da liberdade e da valorização dos direitos humanos. 


Aliás, penso que o feminismo está à esquerda da esquerda[iii] porque a diferença entre os gêneros masculino e feminino foi a primeira desigualdade social que existiu e permanece, repito, nas sociedades mais avançadas. Alcançar a igualdade de direitos, de poder e ideológica entre homens e mulheres é ao mesmo tempo a questão mais importante e a mais difícil para a construção de uma sociedade realmente justa.

Assim, o feminismo, sendo de esquerda, costuma ser identificado pelos conservadores com outras posições políticas polêmicas, como a liberação das drogas, a liberdade homo afetiva, a globalização cultural, a defesa do meio ambiente e, no extremo do espectro, com o comunismo. No entanto, o feminismo não fez parte de nenhuma das propostas comunistas e tampouco as sociedades ditas comunistas conseguiram abolir o machismo em suas experiências reais.

A estratégia Adâmica, portanto, para reforçar a hegemonia masculina, tem sido combater o feminismo (que nos incomoda em casa), juntando-o com a esquerda (que incomoda os grandes interesses econômicos) e, no limite, com a ameaça do comunismo (que assusta grande parte da população). Mas o velho comunismo, aquela ideia de uma sociedade futura e igualitária construída à força das armas, se não morreu está agonizando[iv] e o que resta dele é um fantasma, uma espécie de lençol esfarrapado que os homens conservadores jogam sobre a esquerda e sobre as feministas para confundir a sociedade e assim manter privilégios masculinos intocados.

Em resumo, pelo menos uma parte do avanço dos líderes populistas de direita (com perfil machista explícito) em todo o mundo, apesar de enormes diferenças culturais e econômicas entre os países onde isto vem ocorrendo (por exemplo, Estados Unidos, Brasil, Áustria e Suécia), precisa ser decorrente de algo em comum entre todos estes países. O denominador comum entre os diversos populistas recentes talvez seja justamente a revolta machista contra as conquistas femininas, uma espécie de refluxo conservador primitivo, subconsciente e velado no ocidente e explícito nos países dominados por religiões arcaicas.

Ou seja, Adão anda insatisfeito com este cerceamento de sua liberdade causada pela cultura dos direitos humanos e da paz e acha que sua infelicidade é culpa da Eva. Então ele procura o Senhor. - Outra vez? - Reclama The Master of Universe. Adão resmunga: - Já tentei de tudo... desde proibição para estudar até fogueira na inquisição, mas nada cala esta mulher! O Senhor pensa um longo tempo e decide: - Chama a serpente!  



Dezembro 2018

Thalma, obrigado pela leitura e sugestões.



Notas

[i] Em seu livro “Sapiens – Uma breve história da humanidade” (páginas 161-168, 12ª edição, 2016) Yuval Noah Harari apresenta resumidamente as principais teorias que tentam explicar esta dominação masculina, concluindo que ainda não sabemos ao certo a sua causa. Ver também a proibição às mulheres de exercerem atividades como pajés: https://arte.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/sebastiao-salgado/yawanawa/primeiras-pajes-mulheres-resgatam-banhos-curativos/

[ii] Ver dois livros de Steve Pinker: “Os anjos bons de nossa natureza” (2012) e “O novo Iluminismo” (2017).

[iii] Muitas pessoas de esquerda dizem que se acabarmos com a sociedade de classes econômicas existentes no capitalismo a igualdade entre homens e mulheres viria naturalmente. Duvido.

[iv] Ver excelente GREG NEWS especial de dezembro de 2018: https://www.youtube.com/watch?v=AJAS2_F9kic


Atualização em 4/1/2019: Alguns dias depois desta postagem, Eliane Brum escreveu um artigo lúcido e detalhado que aprofunda imensamente o que tentei dizer. Ver AQUI



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