Um homem que não gosta de leis

Ele nasce longe do poder.

Ele sobrevive às dificuldades da vida, que deixam marcas visíveis em seu corpo.

Seu corpo se parece com o de um homem comum, com suas imperfeições, mas suas possíveis pequenas feiuras se tornam irrelevantes pelo fogo no olhar, direto, persuasivo, inesquecível para os admiradores que vai arrebanhando. Ele sabe sorrir, e quanto mais poder adquire, mais largo e cativante é seu sorriso.

Suas preferências cotidianas se aproximam do gosto popular, pois não aprecia a erudição, despreza os doutores e mantem sotaques que marcam sua origem e personalidade agrestes.

É um homem que fala em nome dos oprimidos e aceita que o chamem de pai dos pobres, mas aprende a conviver com os ricos. Morde às vezes as canelas dos poderosos, mas não lhes toma a Casa Grande nem altera sua conta bancária. Na verdade, torna-se amigo pessoal de alguns deles, que o apoiam enquanto lhes convém.

É capaz de dividir apaixonadamente uma população entre “nós” e “eles”, apesar de pertencer ideologicamente mais a eles do que a nós. Esta cisão pode levar seus seguidores e adversários a batalhas fratricidas, que se revelam irracionais pois ele transforma os inimigos de ontem em aliados de hoje, se isto permitir sua continuidade no poder. E seus seguidores acabam beijando a face que espancaram na véspera.

Usa palavras de ordem revolucionárias, como igualdade, fraternidade e liberdade, mas se mantém religioso, conservador nos costumes e defensor da propriedade privada e das tradições. Liberdade de imprensa, sim, é um valor sagrado se for a seu favor.

Ele diz trazer em si a solução para os grandes problemas, menosprezando o parlamento, as leis, a justiça e especialmente a organização democrática da sociedade civil. Quanto mais alcança o poder, mais decide autocraticamente rodeado por um grupo de amigos fieis, podendo recorrer às medidas autoritárias extremas se a época o permitir.

Ele demonstra temeridade diante das encruzilhadas e toma decisões intuitivas que surpreendem a lógica, enquanto finge manter o diálogo. É capaz de fazer jogo duplo com as potências internacionais, tirando vantagens de um lado sem cuspir no prato do outro.

É um homem que usa as leis quando lhe convém, do contrário ele as muda, se puder, ou as ignora. E o povo, que também não mais acredita na justiça das leis feitas pelos ricos, admira esta coragem faroéstica do seu herói e o mantém na liderança, mesmo se o acusam de corrupção.

Mas ele não simula acreditar neste caminho epopeico: ele se incorpora no próprio mito e vive seu papel como uma missão imposta a ele pelo destino para o benefício da nação, do povo ou da humanidade.

Por isso, quando acuado, o populista resiste até o último momento e, se não puder se livrar das pressões dos adversários, arrasta seu povo para uma guerra civil ou se mata. 



Estou falando de Getúlio Dornelles Vargas.








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