Um macho alfa se despede

O rapaz de bermuda laranja e cabelos grandes e crespos gritou algo que não compreendi com os dois homens que seguiam à sua frente e em seguida saltou sobre um deles, aparentemente tentando mordê-lo no ombro quando eu estava a uns dez metros do grupo. O agredido desvencilhou-se facilmente do negro numa contorção habilidosa e com seus braços musculosos o imobilizou numa chave de pescoço, iniciando uma série de socos na cabeça do rapaz, enquanto ele gritava e o outro homem se aproximava.

A distância entre eles e eu se encurtava, pois continuei caminhando, e em alguma parte da mim começava um tipo de reação impensada que sempre surgiu em situações semelhantes, quando tomei as dores de alguém sendo covardemente agredido e me intrometi na questão, muitas vezes desafiando de forma imprudente a correlação de forças desfavorável às minhas possibilidades de sair ileso daquela situação. O jovem negro estava agora no chão e o segundo homem o chutava enquanto o primeiro continuava a sequência de murros e gritos.

Quando eu estava a uns dois passos deles, levantei os braços e comecei a dizer: Calma! Calma! O homem que socava largou o rapaz de bermuda laranja, o outro parou de o chutar e se afastou um pouco como se fosse continuar sua caminhada, mas permaneceu de cabeça baixa de tal forma que eu não via sua face coberta pelo boné de frente longa. Por milissegundos tive a impressão de que minha chegada havia interrompido a agressão, que ainda me parecia ter sido provocada pelo rapaz negro de bermuda laranja, que agora estava com os cabelos crespos e grandes cobertos de terra, os olhos esbugalhados, a face esquerda e os joelhos com escoriações e sangrando um pouco.

Então o rapaz ferido gritou com o homem que o socava havia poucos instantes: Devolve meu celular! E olhando para mim, apontou o homem que o espancara: Ele roubou meu celular! O outro respondeu: Você está drogado, cara, ficou louco? Que celular? É este aqui o seu celular? – ele exibiu um celular preto em sua mão direita. Você escondeu o meu celular! O homem baixou as calças e a cueca até aparecer parte do seu pênis: Onde está seu celular? Onde tem celular? Pode olhar, vê aqui se tem celular, seu maconhado! E voltando-se para mim: Sou trabalhador, sou bombeiro, olha meu crachá! – ele mostrou-me num relance algo que não consegui ver direito. O rapaz surrado disse: Você escondeu meu celular com ele! – e apontou para o homem de boné, o qual passou por mim em direção contrária àquela em que todos caminhávamos antes do início de tudo e chamou o outro: Vamos embora daqui!

No instante seguinte os dois se afastaram rapidamente e o rapaz em desespero gritou para mim: Me ajuda! Eles roubaram meu celular! Aparvalhado, eu começava a entender que o rapaz negro fora de fato assaltado. Revertia-se meu julgamento inicial desencadeado pelo primeiro gesto de agressão que presenciara e pela aparência daquelas pessoas: o que atacara primeiro era negro e os dois outros eram brancos, o jovem negro vestia roupas e adereços afro e os dois brancos, um pouco mais velhos, usavam roupas comuns, o álibi de baixar as calças simulando sinceridade e a acusação de drogado ao rapaz acrescentaram uma cortina de fumaça ao conjunto de informações que eu dispunha, pois alucinações e paranoias podem fazer parte dos efeitos das drogas.

Envergonhado pelo meu preconceito, vi desvanecer todo o meu impulso de paladino da justiça, de defensor dos fracos e oprimidos, do arrogante temerário de tantos anos que intimamente se vangloriava de ter um coração valente e justo. Esvaziou-se subitamente minha capacidade de enfrentar fisicamente qualquer pessoa e percebi minha fragilidade, minha insegurança e minha idade.

Abri meus braços em desalento e disse: Como posso te ajudar? Eu sou um velho! Depois de um breve olhar de desprezo pela minha impotência, o rapaz saiu correndo atrás dos dois homens gritando: Socorro! Socorro!

Permaneci um tempo imobilizado vendo sua voz se distanciar e o silencio retornar à pista de caminhadas no meio do parque. Retomei lentamente meu caminho com a terrível descoberta de que Trump, Temer e o guarda da esquina são mais fortes do que eu.


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