Não posso me desesperar



Diante do diagnóstico da doença genética e incurável de uma de nossas filhas, Thalma ouviu da amiga e pediatra Cleonice Mota que precisávamos manter a calma para podermos ajudar nossa menina. Apesar de não sermos culpados pela sua doença, éramos responsáveis pela sua vida. Não adiantaria fugirmos para Manchester ou Toronto, porque isso em nada mudaria a situação. Não havia cura, é verdade, mas havia tratamentos.

Hoje vivo um momento semelhante em meu país, assustado diante de uma sociedade injusta, violenta e governada por corruptos, com nossa população agressivamente se dividindo em grupos intolerantes. Vontade de fugir para Minas, mas Minas não há mais, a lama da barragem levou. Vontade de gritar, mas a rouquidão depois dos sessenta deixou minha voz débil e inaudível. Nem mesmo morrer adiantaria: apenas um caixão a mais para ser carregado.

Sempre fui da classe média, filha mimada na ditadura militar, que cresceu esbanjando Miami e importados, individualista e cheia de superioridades sobre as empregadas domésticas, presunçosa no seu papel de guardiã da ciência e da cultura, e descuidada com a própria educação política, o que resultou em partidos frágeis de conteúdo e vulneráveis aos dólares da elite corruptora.

Minha classe média que engordou seus filhos nos tempos de fartura do lula-consumismo e que agora está vendo seus desejos de voltar à Disney serem interrompidos pela crise econômica mundial. E todos nós brigamos à mesa, acusando-nos mutuamente sobre quem roubou mais ou menos o último bife superfaturado da Friboi. Enquanto isso, nossa cozinheira faz hora extra para pagar por um remédio para seu marido desempregado que está com dengue e febre amarela, porque o SUS está sendo desmontado.

O saudoso Milton Santos[1] escreveu em seu último livro “Por uma outra globalização”, no ano 2000, portanto sem ter tido a chance de viver o que considero o Segundo Milagre Brasileiro (2003-2012), estas palavras indispensáveis:

“Já que não mais encontram remédios que lhe eram oferecidos pelo mercado ou pelo Estado como solução aos seus problemas individuais emergentes, as classes médias ganham a percepção de que já não mandam, ou de que já não participam mais da patrulha do poder. Acostumadas a atribuir aos políticos a solução de seus problemas, proclamam, agora, seu descontentamento, distanciando-se deles. Elas já não se veem espelhadas nos partidos e por isso se instalam num desencanto mais abrangente quanto à política propriamente dita. Isto é justificado, em parte, pela visão de consumidor abusado que alimentou durante décadas, agravada pela fragmentação pela mídia, sobretudo televisiva, da formação e da interpretação do processo social. A certeza de não mais influir politicamente é fortalecida nas classes médias, levando-as, não raro, a reagir negativamente, isto é, a desejar menos política e menos participação, quando a reação correta poderia e deveria ser exatamente a oposta”

Obrigado, professor Milton Santos, pelo diagnóstico da minha doença, pelo acolhimento da minha aflição e pela recomendação terapêutica.

Sim, é difícil admitir que pertenço à espécie Sapiens[2], que possui uma história de violência, genocídios e intolerâncias de todos os tipos, e ao mesmo tempo manter a esperança de que as pessoas norte-americanas removerão a mão insana que tenta apertar o botão nuclear[3] para destruir midiaticamente um ditador anacrônico, numa espécie de irreality show.

E o que podem minhas palavras virtuais, ainda que fossem extremamente virtuosas, contra a destruição ambiental causada por chumbo, cimento e dólares na China? O que posso fazer para evitar a destruição do mais avançado sistema público de saúde do mundo, o que deveria ser o SUS, pelos interesses capitalistas? De que servem meus breves conhecimentos científicos contra a epidemia de obesidade que assola as crianças ao meu redor?

O mundo me parece mais complexo, imenso e injusto a cada manhã e é difícil sair da cama por algum motivo que pareça valer a pena neste cenário com bilhões de atores numa peça que nunca foi ensaiada.

No entanto, preciso reconhecer que a nossa doença da desigualdade social, que gera a corrupção de todos os valores humanos, é genética e incurável, mas há tratamentos possíveis. Nada tenho a perder se me dedicar a participar democraticamente da reconstrução da política, do cotidiano ao parlamento, da mesa com meus irmãos e suas ideias diferentes à cozinha, especialmente, unindo-me à trabalhadora doméstica e seu marido doente, porque estamos no mesmo lugar e no mesmo tempo. Ainda não há outro planeta habitável e não há outra época disponível.

Mais uma vez aprendo que não sou culpado pelo que está acontecendo, mas sou responsável pela minha bilionésima parte neste mundo, vasto mundo.

Não há cura, mas há tratamentos.




[1] Ver vídeo sobre algumas ideias de Milton Santos: https://www.youtube.com/watch?v=WLYZmfJXEDY


[2] Ver o livro de Yuval Noah Harari: Sapiens https://www.saraiva.com.br/uma-breve-histria-da-humanidade-sapiens-8733256.html


[3] Ver o filme que abalou minha geração “Doutor Fantástico” com Peter Sellers: https://www.netflix.com/title/60020009?locale=pt-BR

Comentários

Mais visitadas

PJ, o duro

Este livro é uma ousadia

A história em quadrinhos sobre a Amazônia