Ora, direis, ouvir crianças...

As crianças entraram na sala quando o noticiário terminava de mostrar imagens do bombardeio com agentes químicos na Síria. A neta e o neto maiores ficaram paralisados diante das cenas terríveis, mas a neta menor rapidamente se virou e disse:

- Eu não quero ver isso! E arrastou os dois primos menores para o quintal.

O avô desligou a TV e a neta disse: - Nossa...

O neto respondeu em voz alta: - Quem faz isso são assassinos, são terroristas, são do mal!

- Por que eles fizeram isso, vô? – Perguntou a neta.

O avô chamou os dois para o sofá: - É difícil explicar uma coisa tão horrível.... Eu mesmo não sei se entendo o que está acontecendo lá...

O neto interrompe decisivo: - Eu já sei! É por causa de religião, meu pai já me explicou, são muçulmanos e católicos e judeus brigando!

O avô coçou o queixo: - É mais complicado..., mas seu pai tem razão, em parte, porque a muitas pessoas acreditam que a solução para o mundo vem de Deus, mas se as religiões têm visões diferentes sobre o mundo os caminhos que elas defendem entram em conflito...

- Mas precisa matar e jogar veneno nas crianças por causa disso? – Interrompe a neta.

- Não, de jeito nenhum, concorda o avô, mas há muita briga pelo mundo, inclusive na Síria, entre as pessoas que defendem algumas ideias diferentes sobre como deveria ser a vida...

Os olhos da neta brilharam: - Quais ideias?

- São quatro grandes ideias, - o avô continuou, a primeira já falamos, - apontou para o neto, é a ideia de que Deus é que decide nosso destino. Se Deus é que decide, então é só obedecer ao que ele diz, seguir a bíblia, o alcorão, por exemplo...

- E as outras? - Interessou-se o menino.

- A segunda ideia, que a maioria das pessoas hoje também acredita, é a de que, independentemente de Deus, se deixarmos as pessoas livres para trabalharem e criarem riquezas o mundo será melhor.

- E, não é? Perguntou a neta.

- Em parte, sim, mas quando alguém fica muito rico ele tira a liberdade dos outros com o poder do seu dinheiro, ele manda em todo o mundo e só ele vive feliz e o resto na pobreza.

- E a terceira ideia? Lembrou o neto.

- A terceira é que todas as coisas devem pertencer a todos, o mundo não poderia ser propriedade de ninguém e tudo deveria ser coletivo para o mundo ser melhor.

- Achei legal essa ideia. Disse a neta.

- Isso não dá certo na minha casa: meu irmão mais novo acha que tudo é dele... lamentou o neto.

- Então, - concordou o avô, as pessoas são diferentes e desejam fazer coisas diferentes e se formos obrigar a todos que sigam o mesmo caminho isso acaba em... ditadura. Sabem o que é isso, né?

- Sabemos, - disseram as crianças, é quando os militares prendem e matam as pessoas que não obedecem a eles. E a quarta ideia? – Perguntou o neto.

- É acreditar que os mais fortes devem eliminar os mais fracos e no final quem sobrar seria uma raça humana perfeita, sem problemas.

- Igual aos índios! Lembrou o neto. As tribos mais fortes destroem as mais fracas e ficam com o território e as comidas para elas. Força, mano, power!

- Bem... - suspirou o avô, - os índios vivem sob condições da natureza, a sua sobrevivência é muito difícil, então...

- Já sei a solução! Interrompeu a neta. As pessoas que pensam estas quatro ideias diferentes poderiam se sentar numa mesa e conversar para escolher o melhor de cada uma delas e fazer uma quinta ideia perfeita.

- Isso se chama democracia.... Riu o avô.

- Ah, democracia não funciona! – Balançou a cabeça o neto. Minha mãe diz que a democracia acabou depois que os americanos elegeram esse tal de Trump. Tem que ser muito burro, mêu, prá votar num maluco de topete como aquele!

O avô distraiu-se lembrando-se de Robert Burton, que questiona se a mente humana está preparada para lidar com um mundo tão complexo como o atual e que por isso pode ser manipulada facilmente pelos políticos, mas interrompeu seu pensamento com a dúvida da neta:

- Não tem jeito, então? O mundo vai continuar matando as crianças daquele jeito? – Lamentou a neta.

- Eu espero do fundo do meu coração que não, mas é preciso muito esforço e muito tempo para um dia praticarmos a verdadeira democracia... - retomou o avô.

- Pois então, - interrompeu o neto, eu vou começar a democracia é agora: quem quer continuar esta conversa e quem quer voltar para a brincadeira?

A sala ficou vazia. A tela preta voltou a ser a fronteira virtual entre a tragédia do mundo presente e a esperança num mundo futuro que existe em todas as crianças, todas, inclusive as crianças da Síria.


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