A civilização como efeito colateral ou sequela?



Semana passada, depois de uma boa conversa sobre psicanálise, minha filha Luíza comentou que eu havia dito em algum momento que a civilização seria uma sequela do nosso cérebro primata muito desenvolvido intelectualmente. Jacqueline perguntou-me como eu havia chegado a esta conclusão, ao que respondi que foram as leituras ao longo da vida e minha própria linha de pesquisa na universidade. Ela então me pediu indicação de algum livro onde ela pudesse encontrar esta ideia. Passei os últimos dias pensando sobre isto e não consegui encontrar num único autor a sequência completa de passos racionais que desenvolvi para chegar àquela conclusão. Cada um dos pensadores que alimentaram meus pensamentos poderia fundamentar melhor o significado de cada etapa sem, no entanto, concordar obrigatoriamente com a anterior ou a seguinte. Por isso, assumo a responsabilidade pela especulação completa que parte, é claro de meus fundamentos biológicos.

Para que possamos prosseguir nesta fantasia da possível trajetória de nossa espécie humana, preciso reafirmar meu antigo aprendizado de que somos resultado da evolução da vida sobre o nosso planeta, evolução esta regida pela seleção natural e que não tem um propósito final, ou sentido a ser alcançado. Está implícito, portanto, que não incluirei qualquer elemento divino nas etapas percorridas, seja na origem, nos meios ou nas finalidades.

Além disso, preciso limitar meu campo de reflexão a um pequeno período restrito aos últimos 10 milhões de anos, num universo supostamente conhecido que se situa entre dois momentos do espaço-tempo: seu surgimento, chamado Big-Bang, pois antes dele não sabemos (eu pelo menos não sei) o que existiria, e seus limites, além dos quais também nada sabemos (eu, pelo menos...), uma vez que nada pode ultrapassar a velocidade da luz, ou seja, a velocidade da própria expansão do universo. Digo isto não para complicar as coisas, mas para lembrar que há ignorâncias e ignorãnças em tudo o que supostamente sabemos (eu...), e a pior delas é ignorar sua existência.

Delimitado o meu campo de pensamento, começo relembrando que somos primatas, gênero de animais predominantemente formado por espécies sociais, ou seja, que precisam viver em grupos organizados em função das relações afetivas estabelecidas entre seus membros. Nestas espécies sociais, as ligações entre cada indivíduo e os demais são estabelecidas por diversos laços, entre eles os sexuais, e são tão fortes que o indivíduo isolado não sobrevive na natureza. Esta estrutura social complexa, que evitarei chamar de classes sociais para não imprimir a elas minha visão antropocêntrica, define papeis diferenciados aos membros, em função de seu sexo, tamanho, idade, força e outros atributos naturais, que podendo ser transmitidos geneticamente definem os comportamento específicos de cada animal. Assim, o Muriqui do Norte, o maior primata das Américas, ameaçado de extinção pelo desmatamento e sobrevivendo em áreas de proteção na Zona da Mata de Minas Gerais, é uma espécie com machos e fêmeas do mesmo tamanho corporal, o que indica que não há competição física entre os machos nem domínio dos machos sobre as fêmeas. Ao contrário, noutros primatas, como o chimpanzé (Pan troglodites) - e a nossa própria espécie (Homo sapiens), - os machos são maiores do que as fêmeas, indicando maior comportamento competitivo entre machos e domínio físico sobre as fêmeas.

Pois bem, há alguns milhões de anos, antecessores dos primatas atuais aumentaram progressivamente de tamanho, dando origem aos chamados primatas de grande porte atuais, como os chimpanzés, gorilas, orangotango e a nossa espécie. O aumento do tamanho corporal resulta em maior produção de calor como produto do metabolismo do animal, e este calor precisa ser dissipado para o ambiente, o que pode se tornar um problema quando o ambiente for quente e úmido como as florestas tropicais. Por isto, à medida que cresciam em tamanho, os primatas reduziam a sua camada de pelos para facilitar a troca de calor: um chimpanzé tem dezenas de vezes menos pelos do que um mico leão dourado, por exemplo.

Mas, simplesmente reduzir os pelos não parece ter sido suficiente para reduzir a temperatura interna: os primatas foram modificando suas glândulas sudoríparas, tornando-as mais numerosas e eficientes na produção de um suor mais diluído e mais fácil de ser evaporado. Esta nova seleção evolutiva, por sua vez, trouxe um efeito colateral: os filhotes teriam menos pelos da mãe onde se segurarem durante as constantes locomoções maternas em busca de alimentos, o que poderia reduzir a sua chance de sobreviver. Provavelmente, em decorrência deste problema, a solução teria sido andar mais com os pés, liberando uma ou as duas mãos para segurar os filhotes. As fêmeas mais propensas a este comportamento, carregar os filhotes, podem ter sido selecionadas progressivamente até que chegamos a espécies cujos ossos indicam que andavam predominantemente sobre os pés, ou seja, eram bípedes como a famosa Lucy, uma Australopitecínea afarensis cujos fósseis foram encontrados no século passado e que teria vivido a cerca de cinco milhões de anos.

O bipedismo teria aberto espaço para a exploração de ambientes mais ricos em outros alimentos além das florestas úmidas, como as florestas secas e savanas, dando origem a novas espécies bípedes, apesar do cérebro da Lucy ainda ser praticamente do mesmo tamanho de um chimpanzé. O cérebro começou a crescer à medida que as vantagens do bipedismo davam vantagens seletivas na obtenção de alimento, formando grupos de animais cada vez maiores. Bandos maiores em animais sociais exigem cérebros maiores capazes de lidarem com o aumento da complexidade das relações entre os muitos indivíduos. Assim, o Homo erectus já apresentava cérebro maior e uma estrutura muscular e óssea típica de animas corredores de longa distância. Várias espécies assemelhadas ao erectus povoaram o que hoje chamamos de África, Europa e Ásia.

Entre os descendentes destas espécies de primatas bípedes, com cérebros cada vez maiores (maiores bandos) poucos pelos corporais e adaptados a corridas de longa duração, há cerca de 150 mil anos surgiu na atual África o Homo sapiens, com as mesmas características físicas que ainda carregamos em nossos corpos atualmente. Esta espécie vinha vivendo como bandos de caçadores e coletores de alimentos até cerca de 50 mil anos, quando alguma coisa favoreceu a seleção de uma mudança em nosso cérebro, a qual ampliou nossa capacidade de comunicação através da linguagem e da música. A partir daí, nossa espécie se espalha por todo o planeta, atingindo os dois continentes aonde ainda não chegara humanos, Austrália e Américas. Povoando passo a passo onde era possível viver, por toda parte surgem as diferentes culturas humanas, entre as quais os habitantes do Brasil antes dos portugueses aqui chegarem.

Aquelas culturas de caçadores e coletores, comumente chamadas de bárbaros, seres inferiores, primitivos e ignorantes pela visão dominante atual, foram capazes de sobreviver aos mais diferentes desafios ambientais, adaptando-se maravilhosamente graças aos recursos de seu cérebro desenvolvido e da sociedade comunista, onde não havia propriedade dos meios de produção dos alimentos ou dos animais e a identidade grupal era fortemente estabelecida, permitindo uma vida feliz e alegre, como mostrou Darcy Ribeiro em seus estudos sobre os índios brasileiros.

No entanto, foi justamente esta capacidade de adaptação cérebro-social dos humanos que iria promover sua maior transformação desde o seu aparecimento: a domesticação dos animais e das plantas, dando origem à propriedade privada dos meios de produção. A agricultura teria levado ao sedentarismo e à sociedade de classes, onde surgiram os que produziam (os trabalhadores), os que comerciavam, os soldados, os administradores (a classe média) e os proprietários (reis, depois senhores feudais e depois os patrões). Estas estruturas sociais se repetiram em diferentes partes da Terra: mesopotâmia, China, Américas e África, quase ao mesmo tempo, cerca de dez mil anos atrás.

Uma casualidade, porém, definiria qual destas civilizações dominaria as demais: o local onde se encontrava determinado grupo de humanos naquele momento: o que hoje chamamos de Oriente Médio, onde havia algumas vantagens naturais sobre as demais: a primeira, uma gramínea chamada trigo, uma espécie mais rica em nutrientes do que suas primas - o arroz na China, o milho nas Américas e o sorgo na África. Segundo, animais de grande porte mais domesticáveis: o boi e o cavalo, que puderam ser usados como fonte de alimento, leite, couro e transporte. Terceiro, uma grande faixa de terra com a mesmo clima no sentido Leste-Oeste, que permitiu a propagação rápida das culturas de plantas e animais que iam sendo descobertas.

Esta civilização mediterrânea desenvolveu-se mais rapidamente em número de pessoas e tecnologia do que as demais, conquistando todas as outras pelas armas, inclusive o aço e pela propagação de germes de bois, porcos e galinhas, aos quais desenvolvera imunidade. Esta civilização fenícia/egípcia/grega/romana dominou o mundo, deixando poucos remanescentes das culturas coletoras caçadoras, como os índios sobreviventes no Brasil.

Bem, desde então, todos conhecem a nossa história: uma sequência de guerras, genocídios, massacres, escravidão, exploração, desmatamento, poluição, desastres ambientais e corrupção de todas as relações humanas em busca do acúmulo de capital.

Pensando assim, a civilização é uma sequela, no sentido médico do termo, do nosso cérebro inteligente. Um dano permanente, causado por uma espécie letal chamada Homo sapiens.

Por outro lado, a civilização nos permitiu uma luz no final do túnel: a democracia.

Hoje, ainda apenas uma democracia eleitoral e política. Um dia, quem sabe, uma democracia social e econômica. Neste sentido, a civilização pode ser um efeito colateral da nossa inteligência, remediável com solidariedade e humanismo.

Lor 25 11 15




Comentário do Professor Enio Pietra Pedroso

Caro Luiz,

Somos uma espécie ainda muito jovem, ainda em seu maternal, o que talvez possa explicar tamanha incapacidade de buscar alternativas para o respeito consigo, com os outros com a natureza. Sou bem otimista e creio que, mesmo com o risco de destruição planetária, ainda há saídas e serão encontradas para tamanha imperícia dessa espécie que se chama de "sapiens" e se julga "ser".

Há poucos dias, quando foi anunciada a presença de água em Marte, a minha filha, que é bióloga, à diferença de nós médicos que optamos por disciplina das mais reacionárias e anti-evolucionista, suspirou e disse, lá estará o ser humano para destruir mais um planeta.

Existem dois espetaculares escritores que sempre busco auxílio, um é Fernando Pessoa, em seu livro sobre o desassossego - toda vez que estou em polvorosa, pego o livro e em qualquer página que chego e leio, já fico em paz -, outro é Guimarães Rosa, que você conhece também muito bem, e que me ajuda muito, como: "se só de entender, cá comigo, eu entendo. Entendo as coisas e as pessoas"; "eu quase nada sei, mas desconfio de muita coisa".

Penso, Luiz, que a única salvação humana é pela educação, mas não a que estamos praticando, domesticadora; mas a que liberta, libertadora, que tenho tentado praticar em toda a minha vida e que parece ser impossível diante de tamanha dificuldade que significa romper com a ganância, competição, necessidade classificatória de tudo pelo ser humano.

Vamos em frente!

Abraço,

Enio

27/11/2015



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